O 15º Visões Urbanas faz a nossa travessia de casa pro presencial, e do presencial pra rua: a rua é lugar de dança
Depois de duas edições pandêmicas, o Visões Urbanas – Festival Internacional de Dança em Paisagens Urbanas voltou ao presencial. Choveu logo antes da abertura, na sexta-feira 29, Dia Internacional da Dança, o que fez com que algumas das apresentações passassem da Praça Ramos de Azevedo para os espaços comuns do CRD – Centro de Referência da Dança. Tinha todo o gosto da volta à grande programação presencial, mas choveu no nosso gosto de ver a dança na rua.
A rua é um espaço complexo. Se por ela a gente se reconhece e se sente à vontade, no meio da nossa cidade, é verdade que ela também pode ser inóspita, violenta, desagradável, e um espaço que escancara injustiça e desigualdade. Assim como a cidade, a rua também é local de disputa, de controle, de poder, de domínio.
Arte na rua é um tanto de surpresa. Porque as obras são atravessadas pelas pessoas do entorno, porque você assistindo frequentemente vai ser interrompido por alguém que quer saber o que está acontecendo, porque a nova condição de espaço, de luz e de som, com todas as interferências do resto da rua, altera a experiência. Mas também é um espaço de surpresa pras pessoas que estão na rua. Que estão passeando, trabalhando, visitando, vivendo, e de repente encontram dança.
No final do primeiro dia do Visões, a última obra da noite foi pra rua. ‘ELO’, da T.F. Cia de Dança concluiu a nossa passagem. De casa pro presencial, e do presencial pra rua. Não era intencional, mas o efeito foi incrível. ‘ELO’ tem a leveza e a delicadeza pra conduzir esse momento levando ao sorriso. E junto, sorrimos. Com os bailarinos se empilhando, dominando a paisagem, subindo no monumento da fonte, e se abraçando, fizemos a travessia, de volta para a rua.
A chuva deu trégua, e o restante da programação assumiu seu lugar na rua. Eu conversei com um transeunte sobre Arrieta dançando suas memórias de 50 anos de carreira na dança. Um grupo de crianças numa visita escolar foi convencido a ficar pra assistir as apresentações, que foram acumulando gente que não esperava encontrar dança quando saiu de casa. Essa é a força da arte em outras paisagens. Pra quem foi ali pra ver dança, tem a provocação de um outro contexto. Da dança despida de uma noção de “condições ideais”. A rua não é nada ideal. Pra quem passava por ali porque precisava atravessar a rua, tem a provocação da arte. De repente, no meio do caminho, não tem só a brutalidade da cidade. Tem dança.
Toda a dança causa experiências únicas. Na rua, parece que essa característica se intensifica. As coisas se sujam e se borram. Porque os corpos rolam por um chão nada preparado, mas também porque as condições são outras. Perde-se um tanto do controle da caixa preta, da possibilidade de dizer o que olhar, como olhar, com que intensidade. Na rua, tudo vale, tudo faz parte do jogo, e a construção estética é um outro desafio, de elementos incontroláveis.
A programação do fim de semana terminou na Casa das Rosas, onde outra travessia precisava ser feita, pela paulista de manifestações assustadoras, pra chegarmos e sairmos da programação do evento. Os contrastes nunca me pareceram tão intensos. Entre as crianças que descobriam as danças-brinquedo da mostra Urbaninhas, e alguns cartazes indigestos que nos esperavam logo ali na esquina.
A rua é mesmo lugar de embate. De manifestação. De protesto. E de arte. O convite do Visões Urbanas é o da ocupação do espaço com a nossa voz, nosso corpo, nossa dança. Aquilo em que acreditamos, mesmo que ao lado de oposições que gritam horrores. Estar na rua é uma decisão que leva isso em conta. A rua nem sempre acolhe. Dançar nesse espaço incerto é um exercício de coragem, força e resistência. O Visões Urbanas segue chamando pra dançar a rua, na rua, com a rua, para a rua, apesar da rua.
* Henrique Rochelle é crítico de dança, membro da APCA, doutor em Artes da Cena, Professor Colaborador da ECA/USP, e editor do site Outra Dança.
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