Polifonias do Reencantamento: uma Dança entre Tempos

Foto: Kevin David

Por Guilherme Viégas

Compondo a programação da 14ª edição da Bienal Sesc de Dança, o espetáculo EkesaSanko da Companhia de Dança Corpus Entre Mundos foi apresentado nos dias 04 e 05 de outubro no Espaço Arena do Sesc Campinas. Elegante, potente e cativante, o espetáculo — criado e interpretado pelo bailarino e coreógrafo angolano Dilo Paulo, com direção artística de LennaSiqueira — pode ser muitas coisas, mas não pode ser considerado exatamente como um solo, apesar de contar com um único intérprete. Jamais me atreveria a chamar esse espetáculo assim. Há, em cena, muitos corpos, tempos, elementos e olhares que dançam junto ao herói, vivido por Dilo Paulo, em sua jornada para se reencontrar.

É uma viagem de retorno, de reconexão, de reencantamento. Um processo de libertação, em que vemos um corpo, na busca por sobrevivência, se despir em um mergulho pelas suas memórias e pela sua ancestralidade. Vestido, inicialmente, com aquilo que a sociedade espera de nós — pássaros engaiolados em padrões socioculturais que, estrategicamente, podam nossa liberdade —, vemos nosso herói, de maneira gentil e respeitosa com tudo o que compõe ou que já compôs sua existência, se desprender, ao longo do espetáculo, daquilo que o impede de alçar voos.

Desta forma, os movimentos mais próximos ao chão que marcam a primeira parte do espetáculo vão dando lugar a saltos que fazem nosso herói — cada vez mais leve e consciente de onde veio — alcançar os céus. A ancestralidade — cotidianamente associada à ideia de raízes — aqui não fixa o herói ao chão, pelo contrário, serve como o solo que dá impulso para que se voe cada vez mais alto. É uma dança em conjunto, em comunidade, em sociedade. Imersos em uma lógica temporal espiralar, passado, presente e futuro se encontram para revelar nossa essência perdida.

O espetáculo se transforma em ritual e os olhares são gentilmente convidados por Dilo Paulo para compor a dança. Há um encontro de almas que potencializa toda a transformação sentida pelo nosso herói, criando um canal que conecta intérprete e público — algo que se torna ainda mais forte em função da maior imersão proporcionada pela apresentação em um teatro de arena ao invés da clássica configuração do palco italiano. Paralelamente, também são reveladas histórias marcadas no corpo: pinturas corporais que nos remetem aos rituais de passagem e ao símbolo do Sankofa: uma metáfora do povo Akan — grupo étnico de língua Kwa que habita os territórios da Costa do Marfim e de Gana — que traz um pássaro que olha para trás enquanto carrega um ovo. Segundo Lenna Siqueira, em entrevista realizada pela equipe da Bienal, é justamente essa metáfora que conduz a narrativa do espetáculo, destacando a importância de também olhar para o passado ao caminhar no presente para, assim, construir o futuro.

A iluminação (feita por Gilderlei Menezes) e a dimensão musical — formada por colagens autorais e sons originais —, por suas vezes, trazem para o palco elementos que ora dançam junto a Dilo Paulo, adicionando novas camadas de significados à narrativa proposta, ora evidenciam ou potencializam os sentimentos do personagem. Nesse sentido, vale destacar uma voz que surge entre as rítmicas marcantes e os sons ancestrais que conduzem a escuta do público presente: o histórico discurso de Martin Luther King (“I have a dream”, proferido em 28 de agosto de 1963), enfatizando o sonho por liberdade de um povo que, décadas depois da escravidão, ainda sente a opressão e a exclusão diariamente.

Inspirado pelo discurso e pela simbologia da Sankofa, um caminho para continuar existindo e resistindo na busca por este sonho é apresentado pelo nosso herói: nos voltarmos para nossas memórias e para nossa ancestralidade, nos reencantando através de um olhar sensível com nós mesmos, com o outro e com a nossa história. Assim, o espetáculo EkesaSanko trouxe para o palco da Bienal Sesc de Dança um acolhedor — mas poeticamente político e espiritual — contraponto de memórias que moldam toda uma existência. Um potente momento de sensibilidade e ancestralidade que certamente transforma todos os presentes.

 

Esta resenha foi feita dentro da disciplina “Tópicos Especiais em Arte e Contexto: Produção Crítica em Dança”, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Claudia Alves Guimarães e da Profa. Dra. Cássia Navas Alves de Castro, no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp. A disciplina teve como foco a 14ª Bienal Sesc de Dança, contando com a parceria do Sesc Campinas.

Foto: Mariana Petrucci

Guilherme Viégas

Músico, compositor e pesquisador, Guilherme Corrêa Viégas é licenciado em artes e bacharel em composição musical pela Universidade Estadual de Campinas. Além disso, formou-se no curso técnico em música, com especialização em violoncelo pelo Conservatório Carlos Gomes. Profissionalmente, atua como compositor, produtor musical e diretor de espetáculos de dança, coordenando projetos como o “Noites no Deserto” e o “Terror em Cena”. Paralelamente, dedica-se à Coreomusicologia e ao estudo das relações entre música, dança e dramaturgia no contexto da dança-teatro, realizando, atualmente, uma pesquisa de mestrado com orientação do Prof. Dr. Jorge Schroeder e da Profa. Dra. Mariana Barucco.

PPG Artes da Cena/UNICAMP

PPG Artes da Cena/UNICAMP

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O Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena tem como objetivo a formação de pessoal qualificado para atuar na pesquisa e no ensino de campos pertinentes às artes da cena, quais sejam, o teatro, a dança, a performance, em interlocução ou não com outras artes presenciais, promovendo difusão de conhecimento mediante a colaboração de seus pesquisadores junto a periódicos especializados, eventos científicos da área e, no que concerne à extensão e socialização do conhecimento, apresentação pública dos espetáculos e performances produzidos como fruto das pesquisas.