Dançar com e para as crianças – imaginar formas de cuidados radicais.

Mar - uma dança com o vento de Marina Guzzo. Fotografia: Pablo Saborido.

Este texto nasce de uma vontade de pensar a dança e o cuidado para as crianças em contextos onde se apresentam espetáculos e trabalhos de dança. Me inspirei num encontro que tive no simpósio gtf dance resonance – artistic atunement in motion, realizado na Universidade de Viena. Lá, eu já havia passado dois dias ouvindo, estudando e dançando em torno do tema da ressonância na dança e me encantei com um dos trabalhos apresentados em uma mesa sobre dança e cuidado.

Trata-se da proposta desenvolvida pelo grupo Tanz und Elterscahtz, onde mães-artistas-pesquisadoras propõem um protocolo, uma espécie de “selo de qualidade” ou, como elas nomearam: um rider para que a dança pudesse ser difundida de maneira mais acolhedora para as crianças, suas famílias e cuidadores. O objetivo é pensar em medidas que promovam compreensão, acolhimento e aceitação entre todas as pessoas presentes, criando uma cultura de hospitalidade para a dança na infância. Afinal, um espaço que recebe bem uma criança (e sua mãe/ cuidadora*e*o) recebe bem todo mundo.

Todo mês de outubro vemos uma infinidade de atividades para crianças. De programações em teatros à promoções nos shoppings, esse mês é dedicado a  celebrar a infância como vida, beleza mas também é atravessado por oportunidades de consumo. A data foi criada em 1924, e a ideia era dedicar um dia especial para refletir sobre a importância da infância e valorizar os direitos das crianças. Só ganhou força em 1960, quando a fábrica de brinquedos Estrela, junto com a Johnson & Johnson, lançou a campanha de marketing chamada “Semana do Bebê Robusto”, oferecendo promoções de brinquedos. Também coincidiu com o feriado de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, o que tornou o 12 de outubro um feriado nacional. O dia 12 virou então o “dia das crianças” e outubro o “mês das crianças” em muitos programas de cultura e arte nas instituições e equipamentos culturais.

É a partir da contradição que essa data já apresenta, que aproveito para refletir sobre como os espaços para arte podem ser mais receptivos para crianças e suas famílias. Já que nesse mês temos mais ofertas de “produtos”culturais para as crianças, seria interessante pensar na complexidade do que é produzido e a maneira como é oferecido ao público. E, como consequência, trazer a dança para mais perto nas infâncias, ou para crianças ou com crianças. É crescente o número de artistas e grupos de dança que desenvolvem suas pesquisas voltadas para as infâncias- temos grupos já consolidados nesse tipo de pesquisa, que tem nos ensinado muito sobre a maneira de fazer e cuidar. Cito aqui apenas dois exemplos: Balangandança capitaneada pela Georgia Lengos e Lagartixa na Janela, conduzida pela Uxa Xavier – entre outros. No entanto, para além da criação artística o convite é refletirmos nas ações da rede que recebe esses trabalhos: operadores culturais, educadores, produtores e curadores. Há toda uma estratégia necessária para que o produto artístico encontre seu público. E essa rede e estratégia precisam estar também atravessadas pelo pensamento do cuidado radical. Com o entendimento que são as crianças o futuro da dança (e do planeta).

Algumas questões que espero jogar na roda: O que temos feito para pensar a dança em seus contextos expandidos? Como temos incluído famílias nas programações e nas políticas públicas para as artes? Como tem sido pensado o acesso e a estrutura dos espaços culturais para a recepção dessas pessoas pequenas e suas famílias? Em que formatos? Com qual comunicação? Acho que a questão do preço também é importantíssima – quem tem acesso para pagar um ingresso de espetáculo de dança? E o transporte, a alimentação no passeio, etc. Como estão pensadas as políticas de apoio para mães criadoras? Como os festivais têm recebido famílias de artistas? Ou do público?

Trago aqui a tradução da publicação do grupo alemão, que traz pontos fundamentais para essa discussão. E nos ajuda a pensar o nosso contexto brasileiro!  Que a gente possa continuar criando com e para as crianças, respeitando as diferentes infâncias e seus contextos e recebendo também apoio dos equipamentos culturais, políticas públicas e instituições para que isso aconteça da melhor forma possível. Com ética e alegria.

Crianças e Cuidadores – um rider de recomendações

Concebido pelo grupo Ag Tanz und Elternschaft no âmbito do laboratório de avaliação Artist Lab / Get labelled: Parents in Theaters!

Nosso propósito é pensar os espaços de dança e teatro como lugares vivos, abertos e permeáveis, em que o potencial de cuidadores, famílias e crianças como público seja considerado e valorizado. O que vocês podem implementar imediatamente ou em breve? Quais recursos já estão disponíveis para estabelecer de forma sustentável e orientada para o futuro um conceito familiar para eventos e/ou para o seu espaço de apresentações? O que ainda falta e necessita de recursos financeiros adicionais?

Dividido em diferentes categorias, este Rider é uma recomendação prática de ação para a dança e as artes cênicas, a fim de atrair pais, cuidadores e famílias como público.

Formatos

Quais condições facilitam a ida a uma apresentação com crianças? Quais formatos são particularmente adequados para famílias e cuidadores?

✹ Formatos nos quais a livre movimentação e interrupções individuais sejam possíveis, em que já exista um certo nível de ruído no ambiente, que sejam gratuitos ou de baixo custo e/ou que ofereçam atividades complementares.

✹ Formatos que aconteçam durante o dia, que permitam planejamento prévio e entrada tardia, já que a pontualidade com crianças nem sempre é possível.

✹ Formatos específicos para determinados espaços e ao ar livre; formatos participativos e interativos; instalações; ensaios abertos; apresentações com público reduzido; elencos intergeracionais e diversos.

✹ Formatos híbridos ou digitais, devido à flexibilidade de horários que proporcionam.

✹ Espetáculos e formatos adaptados a critérios familiares, especialmente no que se refere a estímulos sensoriais e outros fatores desencadeadores.

Comunicação

Como vocês comunicam de forma transparente os conteúdos do programa, os espaços e as condições das apresentações no que se refere a pais, cuidadores e crianças como público? Que cultura de acolhimento vocês cultivam? Ela pode se expressar, por exemplo, da seguinte forma:

Trabalho de divulgação e imprensa
Comunicação transparente em relação a:
✹ Espaços, infraestrutura e política de preços.
✹ Início e duração, incluindo intervalos.
✹ Recomendações etárias e temática da obra (em texto e/ou trailer).
✹ Avisos de gatilho sobre estímulos sensoriais (por exemplo: luz estroboscópica, volume alto), conteúdos sexualizados ou violentos.
✹ Programas paralelos, ações de mediação ou ofertas complementares.

Com o público

Como vocês se dirigem ao público no local para promover compreensão e aceitação mútua entre todos os presentes? Observem, por exemplo:
✹ Informações e visibilidade no espaço, incluindo sinalização.
✹ Discurso de boas-vindas ou de abertura que dê as boas-vindas explicitamente também às crianças, pais e cuidadores presentes.

Interno / Equipe

Os(as) seus(suas) artistas convidados(as) conhecem as condições já existentes de acolhimento familiar? Vocês informam suas equipes de todos os setores sobre as ofertas familiares e as condições do espaço? Por exemplo:
✹ Localização de fraldário, espaço para amamentação e área para deixar carrinhos de bebê.
✹ Preços de entrada familiares.
✹ Responsáveis institucionais pelas ofertas familiares e pelo conceito de awareness.
✹ Ofertas de formação e sensibilização para colaboradores(as), inclusive com especialistas externos(as).

Espaço

Os seus espaços (internos e externos) estão concebidos e equipados de forma a atender às necessidades de famílias e cuidadores como público? É visível, no próprio espaço, que o local é familiar e acolhedor? Isso pode incluir:

✹ Na sala de apresentação: cantos silenciosos, assentos reservados para famílias nos corredores, portas abertas (possibilidade de entrar e sair durante a apresentação).

✹ Espaços adicionais, como foyer, sala de movimento, áreas de convivência, salas de descanso ou de silêncio, cantinho de jogos, pátio, local seguro para estacionar carrinhos de bebê.

✹ Ofertas adicionais para crianças, como oficinas ou serviços de cuidado infantil, em proximidade direta ao evento e devidamente sinalizados.

✹ Instalações sanitárias com trocador, banheiros infantis, pias baixas e lixeiras.

✹ Alternativas de assento, como almofadas, puffes, assentos elevatórios no público.

✹ Móveis adaptados às crianças, por exemplo, cadeiras e mesas menores em salas adicionais.

✹ Espaços seguros para crianças, com verificação de riscos: tomadas, objetos soltos, batentes de porta.

Equipe

Quem concebe e acompanha as ofertas familiares? Quais recursos humanos já estão disponíveis e onde é necessária ajuda externa? Algumas possibilidades incluem:

✹ Colaboradores(as) responsáveis e especialistas externos(as) para ofertas familiares e programas complementares.
✹ Pessoa de referência disponível durante o evento.
✹ Experiência parental dentro da própria equipe.

Ofertas adicionais e programa complementar

Como vocês tornam a visita a um evento mais atraente para o público de famílias e cuidadores por meio de ofertas específicas? Algumas ideias:

✹ Formatos de mediação, por exemplo: workshops, introduções, visitas guiadas táteis.
✹ Formatos de sensibilização para o público em relação a eventos familiares.
✹ Serviços de cuidado infantil.
✹ Ofertas culinárias

Organização do tempo

Como vocês levam em consideração famílias e cuidadores na organização temporal das apresentações? Podem ser pensadas, por exemplo:

✹ Diferentes dias da semana e horários, como manhãs ou tardes.
✹ Estabelecer no programa eventos familiares recorrentes.
✹ Duração curta das apresentações ou intervalos, que facilitam o acesso e a recepção.
✹ Formatos digitais, que permitem acesso por meio de maior flexibilidade de horário.
✹ Tempo para chegada e saída tranquila antes e depois da apresentação.
✹ Considerar o planejamento prévio necessário para famílias e cuidadores.

Política de preços

Como vocês implementam uma política de preços voltada para famílias? É importante considerar:

✹ Ingressos infantis gratuitos ou com desconto.
✹ Ingressos familiares e/ou entradas gratuitas ou com desconto para acompanhantes em apresentações infantis.

Redes / Iniciativas

A quem vocês podem recorrer? Especialistas e iniciativas:

✹ Ag Tanz und Elternschaft – https://tanz-und-elternschaft.de
✹ Tanznetz Dresden e.V. – https://tanznetzdresden.de
✹ beyond reproduction – https://motheringintheperformingarts.wordpress.com/about-beyond-reproduction/
✹ Bühnenmütter e.V. – https://www.buehnenmuetter.com
✹ Mokis – https://www.mokis.berlin
✹ Other Writers Need to Concentrate e.V. – https://other-writers.de
✹ RE-DANCE – https://re-dance.work/about/
✹ kunst+kind berlin – https://kunstundkind.berlin/
✹ Balancing Act – https://balancingactcanada.com/en/about/
✹ Dance Mama – https://www.dancemama.org
✹ PiPA – https://pipacampaign.org/

Marina Guzzo

Marina Guzzo

Ver Perfil

Concentra suas criações na interface do corpo e da paisagem, misturando dança, performance e circo ao tensionar os limites da subjetividade nas cidades e na natureza. Desde 2011 tem como centro de sua pesquisa a crise climática e o papel do artista na produção de imaginários para travessias de um mundo em ruínas no Antropoceno. Trabalha em parcerias com equipamentos de saúde, cultura e assistência social pensando a arte como ação política que tece uma rede interespecífica complexa de pessoas, instituições, objetos, plantas, animais, fungos e paisagem. A artista tem pós-doutorado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP e mestrado e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. É Professora Associada da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte no Instituto Saúde e Sociedade.