Uma Dança para Medusa

Os mitos, fábulas, lendas, contos exercem funções importantes na formação da sociedade. Durante séculos suas narrativas influenciaram as construções culturais e políticas, assim como respostas para fenômenos da natureza. E, até hoje na dita contemporaneidade, pode-se dizer que desempenham importante papel em nossa formação pessoal e social. De encontro com essa ideia, a pesquisadora Luiza Helena Hilgert (2020) confirma que a História da Humanidade tem em um de seus eixos a construção de conhecimento que emergem da interpretação dos mitos.

Não recordo a data exata, mas tempos atrás deparei-me com o mito da Medusa, criatura monstruosa que transformava todos que ousassem a olhar-lá em pedra. Versão essa que sempre ouvi, me surpreendi com a história completa da górgona, que não é contada na maioria dos filmes e livros que tive contato. Narrativa que infelizmente se encontra com a vida e experiências das mulheres. Minha compreensão parte da defesa de que todas nós, mulheres, somos um pouco Medusa.

O mito da Medusa aborda temas caros e necessários, como a cultura do estupro, rivalidade e silenciamento feminino. As interpretações que podem ser tiradas desta narrativa são inúmeras. Conhecemos a Medusa pela visão machista e eurocêntrica, como uma criatura monstruosa e maldosa que merece ser decapitada e humilhada. Este mito nos diz muito, de como é ser mulher. Medusa, mulher vaidosa, considerada a mais bela de três irmãs, foi estuprada por Poseidon, e punida por Atena. Era uma das sacerdotisas da deusa, a quem tinha jurado castidade. E como castigo, é transformada em um ser incapaz de ser contemplado, é inviabilizada, pois quem olhar-lá é transformado em pedra. E sua vida tem fim assassinada por Perseu, um homem, sem a mesma o ter provocado, que mata uma mulher grávida, gravidez essa provocada por um estupro. Medusa carregava Pégaso e Crisaor (HILGERT, 2020). Pontos relevantes podem ser tirados dessa história, o fato de uma mulher ter sido estuprada, e punida por outra mulher, enquanto ela foi a vítima. A cultura do estrutupo, machismo e rivalidade feminina ditam o decorrer da fatídica trajetória. Na atualidade, com as pautas feministas, cientes do papel da mulher na sociedade, se torna interessante repensar os mitos, fábulas, contos, lendas que nos foram contados desde que nascemos (HILGERT, 2020).

Ao buscarmos os registros da Medusa na história da arte com foco nas artes visuais – quadros e esculturas – percebe-se que ao longo dos anos a górgona passa de um monstro para uma figura humanizada, feminilizada e sensualizada, que vai de encontro aos padrões de beleza vigentes da época (HILGERT, 2020). Suas características anti humanas se perdem ao no decorrer do tempo e os traços humanos que propiciam a identificação vem à tona. Neste aspecto se pode reconhecer a importância do corpo. O corpo como meio de identificação, que nos faz aproximar de algo e sua história.

Trabalhei com o mito da Medusa em uma turma que sou professora, em uma das instituições prisionais femininas que atuo na cidade de Belo Horizonte – MG. A identificação com a história foi imediata. As estudantes também não conheciam a parte violenta e injusta da narrativa. De alguma maneira, em determinados pontos todas nós estabelecemos ligações com Medusa.

A princípio estudamos a troca da monstruosidade pela beleza. A Medusa se aproxima da imagem e semelhança da mulher, mas continua como um símbolo do traiçoeiro, e de como a mulher representa perigo. Cabelo de víboras, olhar que mata, quem se aproxima está fadado ao pior dos destinos. Com o emaranhado de revoltas que a história provoca, desenvolvemos em nosso corpo algumas reverberações de movimentos e gestos, com o propósito de imprimir nossas movimentações em uma releitura da imagem da Medusa. Os movimentos eram na maioria das vezes fortes, diretos, súbitos, com alto grau de tensão, na escala lecoquiana o sexto Nível Paixão[1], movimentos intensos que explodem no espaço, que aumentam a temperatura da pele.  Mas quando solicitei que as estudantes andassem como a Medusa no ataque de Perseu, caminhavam com medo e cautela, se esquivando. Ou seja, a mulher se esconde, tenta se proteger e mesmo assim perde sua vida. Nosso foco não foi a construção coreográfica e sim experimentar em nossos corpos a história da Medusa. Quais partes dos nossos corpos podem transformar nossos inimigos em pedra? Como fabular (GREINER, 2017) no movimento essa história que nos diz tanto?  E a partir do mover construímos uma obra visual, as cores também foram influenciadas pelas movimentações, nossa pintura foi efetivada com tons fortes como o roxo, vermelho, verde escuro, queríamos deixar a Medusa viva.

Nenhuma mulher escapa de violências ao longo de sua vida, seja ela qual for, infelizmente algumas delas naturalizadas por mitos, lendas e etc. Então como conseguir petrificar nossos algozes por meio da dança, do corpo? Em algumas danças, dançadas por mulheres, principalmente as feitas nos espaços urbanos, percebo uma constante no que tange a apreciação, em específica a masculina, com foco naqueles que desrespeitam as artistas em cena. Quando as mulheres realizam movimentos, ações ou gestos fortes, expandidos que não demonstram vulnerabilidade, parte dos homens se afugentam, param de proferir suas agressões verbais, ficam sem voz. À vista disso acredito que as movimentações que cada mulher traz em seu repertório corporal carregam um pouco da Medusa, mas daquela que encara que tem o poder de petrificar. Tópicos de sua história atravessam todas nós de alguma maneira. O intuito de levar o Mito da Medusa para uma sala de aula composta por mulheres foi o de debater o mundo que nos cerca, criticar e refletir sobre uma narrativa injusta e violenta para assim criarmos em nossos corpos movimentos e gestos petrificantes, na busca de um corpo escudo a prova de Perseu’s.

 

REFERÊNCIAS

GREINER, Christine. Fabulações do corpo japonês e seus microativismos. São Paulo: n-1 edições, 2017.

HILGERT, Luiza Helena. O arcaico do contemporâneo: Medusa e o mito da mulher. Lampião – revista de filosofia. v. 1, n.1, p. 41-70, 2020.

Disponível em: acesso em 27/08/2022.


[1]O professor, teatrólogo e mestre do teatro físico Jacques Lecoq (1921-1999) estabeleceu sete níveis de tensão de contração muscular, que se iniciam na mínima e partem em direção a máxima, sendo nomeados como 1ºSubdescontração; 2º Descontração; 3º Economia; 4º Suspensão; 5º Decisão; 6º Paixão; 7º Asfixia (PRETTE, 2021). Disponível em: acesso em 04/10/2022.

Nailanita Prette

Nailanita Prette

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Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.