Crédito das Fotos: Deságua TURVO. Frame vídeo de Marcos Yoshi
Introdução
O projeto DESÁGUA, idealizado pelo …AVOA! Núcleo Artístico foi contemplado pelo edital PROAC Nº 03/2022 para produção de um espetáculo inédito de dança. Eu, Luciana Bortoletto, sigo em processo de criação de uma dança solo com base em três territórios e rios do Estado de São Paulo. A obra propõe uma dança In Situ, às margens dos rios M’Boi Mirim, que corta o centro histórico do município de Embu das Artes; do Rio Pirajussara, atualmente canalizado e soterrado, sob o bairro Jardim Jussara, região sudoeste do município de São Paulo e do Rio Turvo, que corta o município de Bebedouro, mais especificamente no distrito de Turvínea, região de plantio de laranja e cana-de-açúcar no noroeste do Estado de São Paulo. A escolha desses rios e territórios dizem respeito à minha história familiar: o lugar onde resido atualmente, o lugar onde passei a infância e por fim, a localidade onde nasceu minha avó materna, respectivamente. O texto a seguir é de autoria de meu parceiro de criação, Elder Sereni – dramaturgista do projeto e integrante do …AVOA! Núcleo artístico – que apresenta uma reflexão sobre como está sendo o processo que constitui a dramaturgia do trabalho, em processo neste setembro de 2023. A meu convite, ele compartilha aqui no Portal MUD, algumas de suas percepções e inquietações ao longo do tempo.
Tecer rio, território e memória na dramaturgia em dança – Por Elder Sereni
Em Deságua, projeto contemplado pelo Proac nº3/2023, a dramaturgia se desenvolve no bordear de três rios e das memórias das pessoas que ocupam estes territórios. Foram longos os caminhos percorridos pelas margens dos rios M´boi Mirim, Pirajussara e Turvo. Andar pela borda do rio te faz habitar a fronteira e os espaços entre elementos da natureza. Cores, sons, texturas e energias que se complementam com suas distintas dinâmicas.
Esta é a paisagem de Deságua, nela o corpo dançante está deslocado da centralidade da dança, tanto como elemento discursivo, bem como cinestésico, pois o tudo da pesquisa e da paisagem, dançam. A trama dramatúrgica de Deságua é composta por camadas que se entremeiam, mas se singularizam simultaneamente: as memórias de Luciana Bortoletto nestes três territórios a partir das referências femininas de suas família (mãe e avó), as pesquisas in loco, os inventários participativos de pessoas que residem nos territórios e as proposições de movimento e pesquisa coreográfica.
A dramaturgia deste trabalho é, por estar sendo. Estes rios vivem e sobrevivem a ação da urbanização, realidade em degradação da memória dos mais antigos/as que lá estiveram. Escamoteados e abandonados, os rios permanecem. Correm sobre o silêncio da política ambiental e sob o silêncio da mata. Passados os meses iniciais de pesquisa, o incômodo com o silêncio primeiro e mais aparente, abriu passagem para o segundo silêncio, preferimos então, o da mata, pois encontramos a solenidade e imponência que se escuta em sua margem.
Deságua ensaio M´boi Mirim. Foto de Vitória Savini
Há vida em meio a tristeza e abandono, pois nestas margens, há memória. É na memória em que o rio deságua por cada pessoa depoente nos inventários participativos realizados. Na fala dos/as entrevistados/as, as nuances de temporalidade, timbre, entonação, organização de pensamento e das lembranças, entre outras, compõem braços de rio. Deste modo, os três rios, se ramificam em muitos, pois correm pelas histórias de cada pessoa que os significa à sua peculiar maneira.
Na outra margem do rio, as andanças, os pontos de paragem e ancoragem, geraram contemplação, conversas e silêncios ritualísticos. Esta camada dramatúrgica é geradora de força motriz do trabalho, pois nos proporcionou intimidade com os rios. Brotaram, deste acompanhar seu serpentear e de poder conversar com eles, a escuta sobre o que cada rio tem a nos dizer.
A partir deste margear as memórias inventariadas e as andanças, os esquemas coreográficos se enunciam aos poucos, como nascente. O roteiro dramatúrgico de Deságua se inicia com a ritualização da bailarina com o rio, segue pela criação de um braço de rio que é levado pela bailarina. Assim nasce a energia de Mãe do Rio, que leva em sua frente a necessidade de improvisação com a cidade e os transeuntes, já em suas costas, o rio que a tudo banha, nutre e fertiliza solo urbano.
Deságua Pirajussara. Foto Vitoria Savini
Ao longo do percurso coreográfico, a fala também dança a partir de três referenciais estéticos: como textura sonora que compõe com a cidade; como diálogo com os transeuntes no aqui e agora da ação; como enunciação estético política e comunicação em alto volume. Para tanto, esta dança ocorre ao longo de aproximadamente 1km, com paragens em que o rio forma seus poços de improvisação, nestes, muito de tudo é zona de desejo.
No percurso, a bailarina se defronta com Luciana filha, com sua avó em potencial rio e com sua mãe, que ainda corre em vida. Estas três mulheres dançam com a bailarina em sua atualidade. Quatro mulheres, quatro temporalidades que compõem a paisagem de movimento da corporeidade do trabalho coreográfico, que também conta com figurino de Telumi Helen, sonoridades de Carlos Ávila e Luciana Bortoletto e provocação coreográfica de Vanessa Macedo.
Dramaturgir, neste trabalho, é, portanto, ação, é verbo de tecitura em que se evidencia todos os elementos da paisagem da pesquisa. É mato que se mistura com memória, que está assentado ao lado da pedra em que o rio namora. É gente que chora e ri lágrimas no Turvo, é tradição artística e de resistência que luta contra urbanização do M’Boi Mirim, é cidade que decidiu gerir o fluxo do rio Pirajussara, que praticamente é fio de água que corre fino, mas se alarga na lembrança de um outro território, o do brincar.