Tango e a herança negra

Por Adriana Nogueira

“A milonga é Filha do candombe, assim como tango é Filho da milonga”.

Alfredo Zitarrosa

Milonga, palavra do Kimbundo de origem bantu, significa palavras, conversa. E como milongueira decidi escrever este texto como uma milonga. Falo como mulher branca neta de imigrantes. Minhas avós vieram de Funchal, Ilha da Madeira; Tras os Montes, Santa Marta de Peneguião (Portugal); Málaga, Espanha; e, Lagarto, em Sergipe. Minhas ancestrais da carne fizeram grandes travessias para chegar aqui, neste território, a cidade de São Paulo. É assim que quero começar, dizendo da onde venho, desse pequeno recorte, e do lugar de onde falo. Ultimamente só escrevo com as devidas referências bibliográficas em normas ABNT. No entanto, quero milonguear mais e como numa conversa, trazer mais da minha experiência. 

Começamos com a palavra “estrangeira”, falo das minhas, e, muito provavelmente, das suas. O quanto somos estrangeiras no território que ocupamos? A estrangeira é uma outra, diferente de mim e das minhas identificações, uma outra que chega. Quais as narrativas que se constroem desta outra? Quais os impactos da travessia na chegada desta outra? O que motiva esta outra a atravessar e habitar outro território?

Há travessias que se fazem por escolha e há travessias que se fazem forçosamente, seja por guerra, violação de direitos, escravidão, seca ou fome. E neste ponto nos perguntamos, quais são os barcos que chegaram na Argentina e no Uruguai e que construíram o que nós chamamos de Tango?

Tango na língua bantu kikongo, significa sol, como tempo, tempo transcorrido. A cosmologia bantu traz o movimento do sol como uma forma de representar os movimentos do tempo. Há o momento de despontar, aparecer(Kala), há o momento do ápice (Tukula), há o momento de se por, de envelhecer (Luvemba) e há o momento de morrer, de registro (Musoni).

É comum na grande produção literária sobre a história do tango, começarmos a pensar tango no início do século vinte, a partir dos barcos europeus e falarmos que o tango é “um sentimento triste que se baila” por causa da saudade das imigrantes italianas, espanholas, alemãs e etc. Uma vez, viajava até Aparecida do Norte com o grupo afro das Pretas Bás do Espaço Cultural Adebankê, para dançar as congadas da festa de São Benedito. Um dos líderes

do grupo sentado ao meu lado, um grande educador, respondeu a mim quando o questionei se havia diferença entre as imigrantes européias e as africanas escravizadas: “Mas você acredita que elas realizaram a mesma viagem? As africanas foram caçadas, acorrentadas, tiradas do seu território sem escolha, trazidas cruelmente em um navio e exploradas, muitas vezes, até a morte.”. Nunca me esqueci dessas palavras e acredito que elas são importantes para estarmos sempre atentas ao pesquisarmos as origens do tango e de qualquer cultura popular.

Para quem quiser conhecer mais sobre as academias de tango dirigidas por afrodescendentes no século dezenove sugiro a leitura de Ricardo Rodriguez Molas, no artigo “Aspectos ocultos de la identidad nacional: los afroamericanos y el origen del tango”. Este documento é fácil de encontrar na internet e com certeza ajuda a esticar o olhar da história para os barcos africanos. Possivelmente será duro olhar esta parte da história, mas com certeza o tão famoso slogan tangueiro de tristeza será visto sob outra perspectiva.

A datação das origens do tango sempre iniciarem no século vinte é um exemplo de um projeto para apagar certas histórias que não eram “interessantes” de serem consideradas. Não nos espanta ser este o século da consolidação da modernidade na América Latina. E a que custos esta modernidade nos chega até hoje? A nível de cultura temos uma dívida gigantesca com os povos pretos, descendentes das africanas que foram escravizadas, e com os povos originários.

É importante destacar que o projeto de invisibilizar e silenciar estes povos é dado por políticas públicas assertivas, principalmente do movimento nacionalista instigado pelo progresso da modernidade. No entanto, isto não extermina completamente as manifestações culturais destes povos. Elas permanecem, mais fechadas e mais periféricas, e serão as músicas, as danças e as poesias testemunhas destas histórias.

Encontro Popular Folklórico Abya Yala – Espaço Cultural Adebankê Zona Leste/SP – 2019

O candombe é uma manifestação afro que acontece com grande força no Uruguai e em grupos menores na Argentina, no Brasil (há candombes em Minas Gerais) e em outros países da América Latina.  Tem grande expressividade midiática no carnaval, mas acontece o ano todo nas ruas. Em Montevidéu é possível ver as cumparsas de candombe todas as semanas pelos bairros de Cordón, Cuareim e Ansina. Centenas de pessoas em cortejo  nas ruas tocando tambores e dançando.

A primeira vez que vi candombe atrelado ao tango foi no contra-baixo do Diego Neder que me mostrou a clave 3-2 e depois falou da milonga com a clave 3-3-2 até chegar na milonga ciudadana. Ele me deu uma aula de história sem dizer uma palavra. E foi neste episódio que concretizei a pergunta provocadora de pesquisa: “Se o tango é negro. Se o tango nasce do candombe. Na música isso aparece, mas e no corpo, onde ele está?”.

Isto posto, é importante entender que não é um texto ou alguém que pesquisou mais a fundo que iremos desvelar histórias que foram silenciadas. É necessário muito mais que só a consciência da história, isto é um primeiro passo. É um primeiro movimento, porque há muitas armadilhas coloniais que permanecem e precisamos estar atentas. A colonização foi um processo violento de dominação e isto nos faz responsáveis pela redução dos danos causados.

Escapar dos universalismos é um passo instigante. Tomemos o tango por exemplo. Podemos dizer que, hoje em dia, o tango é dançado mundialmente. No entanto, se dança o mesmo tango em qualquer lugar do mundo? Se você responder sim, isto é preocupante. Porque o mundo é muita coisa, muita gente e se há um jeito certo ou um jeito único de dançar tango e que esse jeito cabe em corpos diferentes, culturas diferentes, pensares diferentes, estamos em frente a uma forma hegemônica e, como toda forma rígida e única, é perigosa.

Como mulher que dança entendo esta busca no corpo. Por isso os caminhos que tenho tomado são em direção a estes saberes e fazeres, roubados e esvaziados pelas culturas hegemônicas advindas principalmente dos processos coloniais europeus e estadunidenses. Isto é porque os processos de apropriação destas culturas foram violentos e mesmo neste movimento de pesquisa é preciso sempre se perguntar: o quanto de colonial têm estes métodos de pesquisa? o quanto de colonizadora posso ser na medida que avanço sobre esses saberes e fazeres?

É o desafio da nossa geração e das nossas próximas. Encontrar o nosso lugar de fala, como nos ensina grandiosamente Djamila Ribeiro, e abrir as milongas entre nós e as nossas. Considerarmos sim os territórios e suas especificidades. Marcharmos contra a globalização que nos faz sermos o mundo, sermos de um jeito só e por isso sermos facilmente cooptadas por formas hegemônicas que nos esvaziam de significado, que nos adoecem.   

O tango e a negritude é a chave para nos conectar ao território do qual já vivemos, já experenciamos, só que não o enxergamos ou fizeram que não enxergássemos. E esta trajetória precisa ser traçada, não há texto que seja suficiente para levar teu corpo a dança como os tambores piano, chico e repique o fazem. Não há verbo que explique o movimento e a música. É preciso trazer para o corpo, trazer para a experiência e tirá-los do esquecimento forçoso e mecânico do qual foram condenados. Sugiro que em sua próxima viagem tangueira (depois da vacina por que estamos em pandemia mundial) você leve sua experiência a uma cumparsa de candombe, que deixe seu quadril aflojarse um pouco e ver o seu corpo derretendo de felicidade. 

Nota

Substitui todos os pronomes masculinos para femininos como treino da escrita e atenção aos processos de generalização de gênero. É muito comum em nossa língua considerarmos o grupo a partir da referência masculina, e, obviamente, na produção da cultura tangueira sempre lemos e circulamos conteúdos produzidos por homens. Agora como autoras podemos sutilmente, então, nos dar ao luxo de trazer à prática do pensar a representatividade das mulheres fazedoras desta história.

 

Adriana Nogueira há 11 anos iniciou sua trajetória tangueira. Viajou pelo Uruguai e Argentina em pesquisa das origens do tango principalmente as manifestações afroameríndias. É organizadora do projeto cultural-social-artístico Tango na Rua, desde 2013, do Encontro Popular Folklórico Abya Yala(2019) e a partir de 2012 foi coordenadora e professora em projetos de formação de Tango em São Paulo em espaços culturais e artísticos como a Funarte, Sesc, Tendal da Lapa, Espaço Cultural Adebanke, Memorial da América Latina, entre outros. No ano de 2020, junto ao projeto artístico pedagógico Transversalidade Poéticas, coordenou e ministrou o curso “Tangô: um corpo histórico”, com continuidade em 2021 atualizado em “Tangô: uma experiência decolonial”. Atuou como dançarina nas cias “Alma de Tango”, “Tango & Paixão”, “Cia Episódios de Tango” e “Cia Jaleo” e como intérprete-criadora no Coletivo Semtemporâneo de Dança. Quanto aos trabalhos de conexão e consciência corporal suas principais referências são pesquisas em meditações ativas do Osho a partir de mediações da Paula Petreca, a “Arte da Presença” de Sonia Mota e aproximações/estudos com a coreologia flamenca de Cylla Alonso e Método OmÌ de Éder Soares. É formada em dança pela Escola Técnica de Artes de São Paulo e graduanda em Pedagogia pela Universidade de São Paulo.

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