Steve Paxton: improvisação e repertório

Na noite do último sábado (09/03), foram apresentados na Culturgest de Lisboa reconstituições de repertórios do bailarino e coreógrafo Steve Paxton, como parte do ciclo de eventos e da exposição dedicada a sua carreira e aos seus 80 anos, que acaba de ser inaugurada.

O programa composto por três peças: “Flat” (1964), “Satisfying Lover” (1976) e “Goldberg Variations” (1986/2010), é uma síntese radical do legado do artista e de toda expansão de paradigmas proposta a partir do movimento pós-moderno na dança, que nos tempos atuais mais do que nunca vale a pena revisitar. 

A primeira peça da noite, “Flat” se trata de um solo de 55 anos de idade. Na partitura original de Steve, vemos um homem de terno caminhar, sentar numa cadeira, despir-se, vestir-se, vez ou outra esboçar algum gesto que expõe um saber mais específico de um treinamento corporal, mas em 90% a ação do dançarino é ocupar nossos olhar com a coreografia de movimentos cotidianos. A ideia de movimento cotidiano, de tão debatida e replicada, sempre me pareceu algo facilmente compreensível a partir do contexto de ruptura com o adestramento de corpos de onde eclode naquele fervor do experimentalismo dos anos 60. Talvez toda minha geração tenha compreendido essa ideia, e só as gerações mais jovens tenham voltado a questioná-la repropondo movimentos virtuosos ou especialistas (mas com que profundidade de questionamento?). Entretanto, ao assistir ontem a reencenação desse repertório pelo bailarino esloveno Jurij Konjar, não pude deixar de admirar a possibilidade que década ali atrás foi criada: um artista vir a cena, a apresentar uma ideia, desenvolvê-la, compartilhar seu pensamento com o público e tratar o palco como um laboratório de investigação. Não sei se por estar vindo do Brasil, onde muitas vezes sinto que a única possibilidade do artista da dança vir a cena é ganhar seu público, vender-se, causar impacto, que ontem a crueza de ver em cena a demonstração de um pensamento foi uma experiência avivadora demais de outros modos de performar. 

A seguir, a peça apresentada é “Satisfyn Lover”, a lendária peça em que Steve Paxton apanhou pessoas comuns e as colocou “apenas caminhando” em cena, atravessando o palco sempre no mesmo sentido, criando uma coreografia com seus diferentes corpos e ritmos, inaugurando a tão narrada possibilidade do movimento pedestre. A história dessa peça, tantas vezes ouvida por mim nos cursos de história da dança que fiz, e tantas vezes contada por mim nos cursos de história da dança que ministrei ontem se presentificou no espaço daquele palco inacreditavelmente de maneira inaugural, me despertando mais uma vez uma reflexão enorme entre o espaço existente entre discurso e prática… Apaixonada pelo estudo de história, e vivendo o momento social e político que vivemos no Brasil não são raras às vezes em que vivencio acontecimentos de macroescala com uma carne e entranha que nenhuma narrativa ou edição e livro dará conta de transcrever… Golpes de estado, prisões políticas, massa manobrada midiaticamente são palavras que com o tempo se esvaziam se seu corpo não estava ali no ato da vivência de tais acontecimentos para lembrar do real significado. Falar de “Satisfyn Lover” é exatamente assim, podemos ficar repetindo a história da experiência dos corpos pedestres, mas estar diante da experiência de presenciar 42 habitantes de Lisboa atravessando a cena, mais uma vez na recriação do esloveno Konjar, é uma experiência impactante demais. O conceito movimento pedestre rapidamente se dilui e vai expondo barrigas que balançam, quadris que oscilam mais para um lado que para o outro, joelho que se esticam para trás, passos que pesam com mais força sobre o chão, pescoços que se avançam à frente da coluna, uma manchadinha, uma infinidade de formas, uma infinidade de corpos, uma pessoa cega e um corpo bengala, diferentes idades e gêneros, gordura, corcunda, alguém muito alto… a tal democracia dos corpos não é uma ideia é um acontecimento. O palco expõe mais uma vez o olhar de longo alcance de Steve, há cinquenta anos atrás já afirmando a potência do corpo, dos corpos, de qualquer corpo. Não é preciso músculos rasgados, saltos estratosféricos, pernas tocando as orelhas. Caminhar, engatinhar, sentar, ficar de pé…, uma vez me disse Steve, é nossa maior tecnologia. A peça dos corpos pedestres enfim é radical exatamente por isso, por não esquecer do corpo, da potência do corpo.


Por fim, no último trabalho da noite Jurij Konjar volta ao palco para improvisar ao som de Bach, a sua interpretação das “Goldberg Variations”, a partir do estudo de Steve Paxton. O norte-americano improvisou por mais de trinta anos sobre uma mesma série de gravações dessas partituras feitas pelo pianista Glenn Gould, levando seu estudo do ato de improvisar a uma dimensão científica, onde a observação do movimento sempre como inauguração, ainda quando atravessado pela repetição, configuram uma postura ética diante da vida, uma busca constante pela invenção em lugar da replicação. 


Tendo contato com as gravações de Paxton improvisando em 2007, o bailarino esloveno se dedicou por anos a imitar as explorações de Steve, até compreender modos como ela aconteciam no corpo, encontrando princípios para pesquisar o movimento que o conectavam a pesquisa de Steve. Assistir esse estudo de movimento, burilado por Konjar a mais de dez anos, é uma experiência impressionante, uma ressignificação no entendimento de repertório. Não mais uma coreografia ou um princípio de movimento estão fixos para serem revisitados, mas algo que organiza um corpo, a criação de uma corporeidade específica é compartilhada pela Goldberg de Steve e de Konjar, e atravessando tudo isso que salta é a maestria da técnica “Material for the Spine”, o grande estudo de movimento do corpo que Steve organiza e que trata da observação mais poética, ética e política obre o corpo humano, bípede, caminhante, disponível a gravidade quer conscientemente ou inconsciente. Assistir a Konjar é observar também a fantasmagoria de uma corporeidade que pode atravessar o tempo e materializar uma qualidade pressupostamente singular em uma outra singularidade, correlata e familiar aquela que a antecede sem sujeição de corpos.

O sorriso de Steve na plateia observando a liberdade daquele que se move a partir da liberdade que seu modo de ver e praticar a dança propõem assinalam a ética que atravessa seu legado e contribuição para a história da dança.

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Paula Petreca

Paula Petreca

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Sou uma artista do movimento e professora de dança e yoga. Estudo o corpo e a dança de diversas formas desde os anos 1990, mas destaco minhas passagens pela Escola Livre de Dança, pelo estúdio Luis Louis de Mímica e de Teatro Físico, pelo estúdio Nave e pelo mestrado em Comunicação e Semiótica da PUCSP como os locais mais importantes para minha formação no Brasil.  Divisor de águas em meu percurso foi o período de quatro anos em que vivi no c.e.m – centro em movimento de Portugal, onde pude ressignificar meus entendimentos de dança a partir dos estudos com Sofia Neuparth, Peter Michael Dietz, Margarida Agostinho, Ainhoa Vidal, Eva Karczag, Lisa Nelson e Steve Paxton, em paralelo ao atravessamento de experiências comprometidas de atuação em dança nas ruas de Lisboa. Como coreógrafa, desde 2007 elaboro peças autorais, e desde 2010 idealizo e dirijo o Projeto Co – plataforma de criação em dança para espaços vários. Em oito anos de trajetória criamos com o Projeto Co dez peças para espaços públicos das cidades de Lisboa, São Paulo e dos sete municípios do ABC Paulista. No campo pedagógico, elaborei pensamentos na coordenação do Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, na Escola Livre de Dança de Santo André, na Escola de Dança de São Paulo, e no presente momento no Centro de Referência da Dança de SP. Atualmente me aprofundo em práticas de meditação ativa e na criação de outras formas de conhecer e existir através da arte e do convívio potente e destemido.