Quer coisa mais brasileira do que Carnaval? A experiência nacional onde todos são dançarinos e coreógrafos de si

Bate-Bola (Rio secret carnival), Vincent Rosenblatt

Nos dias 28 de fevereiro a 04 de março, todos os brasileiros estão se preparando para o réveillon tupiniquim, o evento que marca um processo espetacular, onde o espaço-tempo comum é marcado por um frenesi mágico.

O Carnaval brasileiro é único em todas as regiões. Cada lugar cria o seu modo de ser e estar no mundo, colocando a festa como pivô de expressão. A liberdade de dançar e cantar se torna uma comunicação que dialoga com todos, seja pelos gestos, fantasias e humor. Uma coisa é certa, o carnaval é um exemplo fantástico de que vivemos em um musical complexo, um espetáculo de dança contemporânea onde todos são dançarinos e coreógrafos.

Dentro de uma dramaturgia nonsense que se desenvolve entre ritmos, ameaças de poderes, desigualdade social, repressão, preconceito, mas também de liberdade, inversão da normalidade, resistência em sua forma política e artística, alegria e a promessa de que tudo vai melhorar.

A relação entre dança e carnaval tem a ver com a construção do corpo brasileiro. Resgatando a origem histórica do evento, nesse recorte cito três fases do carnaval carioca, conforme escrito por Fred Góes em “A construção do corpo brasileiro no carnaval”.

Segundo o autor, o carnaval perpassa por uma série de relações de poder, desde o período imperial (1889), o “grande carnaval” com a ideia de “civilização e progresso” (Séc. XX), até a ascensão do carnaval popular e o surgimento do samba e as escolas de samba.

Quando o autor comenta historicamente as relações de cada momento, ele as conecta à forma como lidamos com o presente. O carnaval é um rito de inversão, o momento de coroar o mendigo e decapitar o rei.

Por uma dramaturgia carnavalesca:

O ponto que gostaria de alcançar, é sobre o imaginário construído sobre todos os gestos, fantasias, repressões, violências, resistência e liberdade que o carnaval  originou e desenvolve em nosso cotidiano brasileiro. Fred Góes escreve:

“…Não se pode falar de um corpo carnavalesco construído, sobretudo em face da sua pluralidade. O que há é um corpo em permanente construção, em processo. Um corpo que busca expressar, na permanente movimentação do gesto, a inconstância do tempo e do espaço, como o próprio carnaval”.

Um corpo carnavalesco carrega uma história nacional, marcas de uma pluralidade que cria dramaturgias singulares. São dançarinos compositores de si, transformando gestos infinitamente.

Como já escreve em “Teatro e seu Duplo”, o encenador francês Antonin Artaud, descreve uma ideia de duplo que seria uma espécie de jogo absoluto, que ora é uma alusão a dramaturgias possíveis dentro da dança e teatro, mas também uma forma única de dizer sobre a vida. A ideia do duplo ser uma imagem que desorganiza, pestifica e destitui:

“Um desastre social tão completo, um  tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em  carne viva todos os poderes  da natureza no momento em que ela está prestes a realizar algo essencial” (O teatro e seu duplo).

E esse duplo pode ser algo tão volátil, poderoso e desestabilizador. Por que não considerar o poder que o carnaval tem como um rito de inversão? Assim, é possível criar uma aproximação sobre o que artaud pensa sobre a “peste”:

“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e  as  leva  de  repente  aos  gestos  mais  extremos;  o  teatro  também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro re-faz  o  elo  entre  o  que  é  e  o  que  não  é,  entre  a  virtualidade  do possível  e  o  que  existe  na  natureza  materializada.” (O teatro e seu duplo).

A dança, o teatro e, por que não, o carnaval?,resgata em nós um conflito invisível: desestruturar forças, bagunçar, jogar confete e inverter a ordem tradicional, “perturbar o repouso dos sentidos, liberar o inconsciente comprimido” como já dizia o Artaud.

Por fim, em cada região do Brasil se faz carnaval de um jeito. Escrevo de um lugar onde o carnaval foi cancelado ou se tornou opcional para uma parcela rica da população, mas a grande verdade é que esse momento sempre será nosso, feito para desorganizar, criar no caos a liberdade das inversões.

Chegou o momento de dançar e criar estéticas que são tão nossas. De fato, o Brasil entende tanto de dança contemporânea que o carnaval é feito para formar ainda mais artistas, onde todos são dançarinos e plateia em um jogo alucinante e festivo!

 

*O conteúdo deste texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a posição do Portal MUD.

Gabriel Paleari

Gabriel Paleari

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Copywriter, colunista de dança, sócio da N Produções Culturais Ltda e fundador da Estranha Companhia de Dança-teatro. Bacharel em Artes Cênicas pela UEL, atua nas áreas de criação artística, produção cultural e marketing digital. Desenvolve desde 2014  sua pesquisa ‘Notas Nômades: Cartografia do CsO em Antonin Artaud’’ que investiga o conceito do CsO sob a perspectiva biográfica de Artaud, a qual obteve publicação do artigo no dossiê Antonin Artaud na revista Ephemera. Com seu trabalho artístico fez parte dos festivais como: FILO, Building Bridge Art Exchange, Kinoarte,DANCEP (Curitiba-PR), Festival de Inverno da Universidade São João Del Rei-MG, Festival de dança de Londrina, e a_ponte do Itaú Cultural (SP) . É colunista de dança do PORTAL MUD (Museu Virtual da dança). Em 2023, foi em nome da Estranha como representante sul do país para o MIC- Mercado de Indústrias Criativas do Brasil, e tem como desejo expandir o mercado independente nacional com obras experimentais e de cunho de pesquisa.