Crédito das Fotos: Frame do vídeo Olho D'água.
“(…)os peixes dos remansos(…), o rio, embora assim emaranhado e bárbaro – deram-me ânimo”
(Os rios profundos, José María Arguedas)
Ao longo do projeto Deságua[1], vão se sobrepondo distintas camadas, que complexificam o processo de criação: todas elas são atravessadas pelo corpo e sua interação com os territórios por onde transita, envolvendo os rios e seus contextos. As memórias destes territórios são inventariadas pela pesquisa. Registro os corpos contando histórias e os gestos que surgem em complemento à palavra para criação da imagem/memória. Em alguns casos, vejo gestos semelhantes em pessoas e lugares distintos ao se referirem às águas e aos rios de seu lugar; observo curiosa, como quem está aprendendo um novo idioma, desejando decifrar um enigma, criar sentido, encontrar uma tradução. Minhas próprias memórias familiares se entrecruzam a essas, pois cada um dos três rios: Embu-Mirim, Pirajussara e Turvo também são familiares para mim.
“O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a responsabilidade e o mérito de todo o curso. A força vem da fonte. (…) O sonhador que vê passar a água evoca a origem legendária do rio, sua fonte longínqua”. (Gaston Bachelard, em trecho de “A água e os sonhos”. p. 158).
Meus gestos se formulam à medida em que me conecto com materiais coletados no decorrer do processo: formas, volumes, topografias, cheiros e paisagens, vazios entre uma experiência e outra, vida vivida e imaginada no exercício da criação, mobilidade interna sensível, disponibilidade e ancoramento como desafio de presença fina. Me sinto escavando e mergulhando; é uma busca por uma criação que tem me transportado para uma dimensão mais profunda e espiritual. As substâncias que a constituem percorrem, visitam, se entranham, atravessam, saltam, se reviram em redemoinho; se instauram outros estados de corpo e um campo de possibilidades aparece e desaparece, feito feixes de luz solar que cortam o espaço através de brechas entre árvores e, enfim, tocam o rio por alguns instantes.
“Nesse fluxo, “São movimentos que nos fazem ou nós fazemos o movimento? (…) O que motiva o gesto vai dar qualidade a ele.”[2]
As mãos respondem, pensam, elaboram seus discursos táteis, convocando meu coração, meus centros de mobilidade e estabilidade, a gravidade e contundência de dançar, seja segurando um graveto recolhido na hora, um bocado de barro, um punhado de terra, um seixo achatado e liso, uma folha em decomposição, a voz de alguém que conta o que se recorda.O que me move, respondo agora, são também as memórias. Mas, antes é o corpo navegando em diferentes profundidades e substâncias de criação; encontro pistas sobre como o encontro acontece. Qual é a qualidade do toque? O viés somático se faz presente, é elo de ligação entre mundos. Sinto curiosidade e observo que “A relação com o espaço, a maneira como o meu corpo se conecta com o espaço – como o espaço entra no meu corpo – me traz a sensação de uma prática espiritual”.
Cada rio tem a sua particularidade e elementos representativos para mim nesse jogo de corpo que se configura dança intitulada Olho-D’água[4]. E em todos os rios e territórios, há um grande dinamismo. Na dança, a relevância dos elementos coletados e objetos de valor simbólico, têm sido imprescindíveis, pois todo o processo de criação tem se formulado com base em: caminhar, coletar, contemplar, ouvir, imaginar, tocar, esperar, pausar, perguntar, alcançar, deixar chegar perto, silenciar. São seixos de rio, barro, água, vidro, espelho, algodão, corda, sementes. Há neles, memórias das narrativas de minha mãe, tias e de outras pessoas que vivem e viveram nessas localidades. Tais elementos têm um potencial de ativar minha intuição de mover que vai se aperfeiçoando no próprio mover e também na não-ação. Na dúvida, o toque desvela. O toque é a primeiridade da dança Olho-D’água, uma comunicação que se faz tátil e que, ao mesmo tempo, desvela um lugar povoado por meus antepassados e uma ancestralidade longínqua. A experiência remete, por vezes, à infância e o ato de brincar, com sua efervescência e toda a sorte de poéticas indizíveis, inverbalizáveis… mas que sabem como dançar em mim e comigo e gerar imagens a partir do mundo sensorial.
Na interação com outros entes, outros seres, me recordo de uma anotação que fiz durante um dos encontros do grupo de estudos do movimento pela perspectiva de Hubert Godard, conduzido pela terapeuta rolfista e professora Mônica Caspari, acerca da hapticidade:
“O sentido háptico me possibilita conhecer sem pensar, a partir da experiência corporal. Eu sou movida como Ser pelo objeto com o qual me relaciono”. É uma totalidade de experiência. É uma forma de conhecer as coisas, interagindo corporalmente com elas. Conheço em ação. (…) No toque háptico, a mão quer desvelar e o ato de tocar é com o corpo inteiro. (…) A pessoa que toca se ‘esvazia’ e é desse vazio que acontecem as coisas”.
Em meio a tantas camadas, a respiração me diz sobre tensões e intenções a serem reconhecidas e moduladas. É semelhante à meditação, à sentar-se em zazen, uma abertura. Eleonora Fabião, em um artigo intitulado Corpo cênico, estado cênico, diz que
“geralmente a criatividade é privilegiada em detrimento da receptividade, a força criativa em detrimento do poder receptivo. Estamos mais habituados a agir do que distensionar o corpo e mente a ponto de sermos agidos.(…)sabemos ordenar e dar ordens ao corpo mais do que escutá-lo. A busca por um corpo conectivo e presente é justamente a busca por um corpo amplamente receptivo.”
A pedra sabe-se pedra e me diz como tocá-la. Minhas mãos “sabem” por onde percorrer e o caminho se abre para o todo.
– Eu sou parte da pedra. A pedra-seixo é fria e arredondada;
– A pedra existe em mim, meus ossos se articulam e brincam com a gravidade, num jogo de corpo mineral-espiralado;
– Minha avó vive no algodão. O algodão é macio, leve e tem semente dentro, vindo de outro lugar;
– O barro é mãe. Fértil e úmido.
– A garrafa guarda um segredo. Repleta de vazio, recebe a água que coleto.
– Minhas mãos se moldam aos volumes. As mãos sabem para onde ir.
– Você está em mim e eu em você. Nós comungamos as memórias de quem já se foi, mas que está aqui e agora, de novo. Olho-d’água.
– Quando me movimento, movimento tuas águas? As minhas águas, tenho certeza que sim porque sinto mudarem de lugar quando chacoalho e deslizo.
– Rios têm corpos? Se tem contorno, se eles nascem, se existem, se estão manifestados no mundo visível, nos tocamos enquanto corpos oriundos da mesma Terra.
– Vejo uma criança debruçada para ver o rio correr forte sobre pedras, em meio ao passeio público, no centro da cidade. Os olhos brilham diante do rio. O cheiro do rio poluído se espalha. Imagino um mergulho no verão quando ainda era possível. Imagina?
– Um dia fomos peixe. Morei dentro de minha avó, através da minha mãe. Hoje minha avó mora em mim. Povoado Lambari.
– Humus, humanum est. Estou encarnada.
Breves anotações em diferentes partes de um caderno de viagem, em retrospectiva, revelam detalhes que vêm se repetindo espontaneamente: o toque em um sentido amplo que se faz pulsão de vida, incompletude e abertura para o jogo com o ambiente.
O toque que desvela não se impõe e sugere o que é próprio à natureza da dança, efêmero e sempre diferente, ainda que os movimentos pareçam se repetir: “Na dança não importa sua escolha composicional, as relações são, por natureza, de inacabamento”.[6
Olho-D’água estreia dia 25 de abril de 2024 no município de Bebedouro-SP, em escolas da rede pública de ensino e segue com apresentações em São Paulo e Embu das Artes, ao longo do mês de maio.
Breve, divulgaremos maiores informações.
[1] O projeto DESÁGUA (…AVOA! Núcleo Artístico) foi contemplado pelo edital PROAC Nº 03/2022 para produção de um espetáculo inédito de dança, a partir do encontro com três territórios e rios do Estado de São Paulo: Rio M’Boi Mirim, que corta o centro histórico do município de Embu das Artes; Rio Pirajussara, atualmente canalizado e soterrado, sob o bairro Jardim Jussara, região sudoeste do município de São Paulo e o Rio Turvo, que deu origem ao distrito de Turvínia, no município de Bebedouro. A escolha desses rios e territórios dizem respeito à minha história familiar: o lugar onde resido atualmente, o lugar onde passei a infância e por fim, a localidade onde nasceu minha avó materna, respectivamente. Neste momento, em fase de montagem e estreia, surge o solo Olho-D’água.
[2] Anotações minhas, durante encontro do grupo de estudos do movimento – Teoria e Prática de Hubert Godard, com coordenação da terapeuta rolfista e professora Monica Caspari. 2016
[3]Excerto do texto COrpo cênico, Estado cênico, de Eleonora Fabião. Disponível em: https://novo.pedroprado.com.br/wp-content/uploads/2016/12/1104.pdf
[4] O olho d’água ou, como também é conhecido, mina d’água, fio d’água, cabeceira e fonte, nada mais é que uma nascente, o aparecimento na superfície do terreno de um lençol subterrâneo, que dá origem a cursos d’água ou rio. Fonte: https://cbhsaofrancisco.org.br/noticias/natureza_blog/o-que-e-olho-dagua/
[5] Anotações minhas, durante encontro do grupo de estudos do movimento – Teoria e Prática de Hubert Godard, com coordenação da terapeuta rolfista e professora Monica Caspari. 2016
[6] Tese de doutorado da bailarina e coreógrafa Vanessa Macedo de Freitas (uma de nossas colaboradoras do projeto Deságua) intitulada “Pulsação da obra: dramaturgias nas práticas contemporâneas de dança”. p. 158 Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-03022017-155742/publico/VanessaFreitasdePaivaMacedoVC.pdf