O Pas de Deux da dúvida e da confiança

Crédito das Fotos: Espetáculo online Tripataka, de Natya Yoga Brasil. Foto Baladeva Nitai

Estamos em um mundo de incertezas, de dúvidas. Mesmo aquele pouco que tomamos por garantido pode, a qualquer momento, desabar. Há pouco tempo não imaginávamos que nos veríamos restritos da forma como ficamos pela pandemia, por exemplo. Isso para não falar das incertezas internas, das dúvidas relativas às relações, ao trabalho, à economia… E é fato que, quanto menos sentimos ter controle sobre as circunstâncias da nossa vida, mais propensos ficamos a nos sentir deprimidos1, insatisfeitos, ansiosos, estressados, pois isso faz parte do nosso instinto de sobrevivência.  

Todos queremos ter algum senso de controle, e queremos saber ao certo o que estamos fazendo, do que somos capazes e aonde podemos chegar e, de preferência, como chegar lá – e rápido. E se as certezas, a autoconfiança e a autoestima podem ser grandes aliadas, as incertezas, a desconfiança e até mesmo estar perdido também podem! É tudo uma questão de empregar as coisas certas nos lugares e nos momentos certos.

O dançarino e pesquisador Almir Ribeiro contou, em uma palestra que deu em Belo Horizonte em 2022 sobre a relevância da arte indiana para os artistas em geral, que certa vez foi abordado por alguns estudantes quando estava à frente de um curso de artes. Após concluírem seus anos de estudo no curso, os estudantes foram até ele dizendo que, apesar daquele período todo de aprendizado, sentiam que ainda não estavam preparados, ainda não sabiam quase nada. E Almir sorriu, contente, pois eles haviam entendido algo primordial – é preciso uma vida de prática e de mergulho, é preciso muita experiência, erros e acertos, é preciso muito mais do que alguns anos para se formar um artista. Ele, então, apontou para o fato de como sempre estamos tentando passar rapidamente pela fase de aprendizado. Queremos nos formar logo nos primeiros anos da escola, e nos seguintes, para então entrarmos logo na faculdade, onde queremos logo nos formar. E, nessa corrida, acabamos por pular fases, momentos de não saber, de dúvidas, de erros e experiências essenciais que acabam por nos fortalecer e estabelecer as bases que nos levarão aonde devemos chegar.

Harinie Jeevetha, um dos nomes de grande destaque da dança atualmente, tem sua trajetória contada em um vídeo da companhia de dança da qual faz parte2, no qual é dito que ela nunca conseguia ganhar nenhuma competição de dança em que participava. Ela tinha grande dificuldade em manter o equilíbrio e isso sempre a atrapalhava. Em um cenário em que disputava com várias crianças prodígio, embora sempre tenha sido muito talentosa, esse seu ponto fraco a impedia de conquistar o primeiro lugar. Ela poderia ter duvidado de si mesma e abandonado seu sonho de fazer uma carreira como dançarina. Mas a mentalidade de crescimento3 que seus pais e sua professora a ajudaram a desenvolver, a aceitação de que ainda não estava pronta, mas que em algum momento viria a estar se continuasse se esforçando, e o fato de seguir a instrução de sua professora que lhe disse que continuasse a participar das competições mesmo assim – tudo isso a levou adiante, e hoje ela chegou onde está. Ela sabiamente substituiu a certeza de que não era capaz pela certeza de que ela estava apenas em um momento do seu aprendizado, do seu processo.

Muitas vezes, confiamos demais na nossa mente, que surge cheia de dúvidas e incertezas. Essa confiança na dúvida não é saudável. Ás vezes, precisamos desconfiar das nossas desconfianças. Da mesma forma, não é saudável confiar em falsas certezas que podemos cultivar sobre nós mesmos – tanto sobre nossas capacidades quanto sobre nossas incapacidades. Podemos nos sentir especialmente incapazes, ou especialmente capazes, e ambas as circunstâncias são uma grande armadilha. É melhor admitirmos nossas dificuldades técnicas e, que junto a elas, vem nossa indisciplina ou  preguiça ou dificuldade em gerenciar o tempo, do que nos afirmarmos como simplesmente incapazes de aprender ou realizar algo. É também melhor admitirmos que não passamos em um teste, em uma prova, em uma audição porque ainda temos aspectos a trabalhar, porque os concorrentes se saíram melhor, ou porque não nos dedicamos o suficiente, do que dizermos para nós mesmos que somos os melhores mas os outros são tão incapazes que não conseguem enxergar, ou que estamos cercados pela inveja, ou dar qualquer outra desculpa. De fato, todas essas possibilidades podem ser verdadeiras, mas também podem não ser. E é esse tipo de dúvida saudável que precisamos cultivar, pois com ela podemos crescer, podemos melhorar ou até mesmo mudar. Afinal, culpar os outros ou as circunstâncias de nada adianta, pois isso é algo sobre o que, de fato, não temos controle. Mas podemos controlar a nós mesmos, trabalhar mais e melhor, nos lapidar, buscar progredir. Nos concentrarmos sobre aquilo que está sob nosso controle satisfará nossa necessidade de sentir que algo está em nosso poder, ao mesmo tempo em que trabalhamos em nós a aceitação daquilo que está além de nossa esfera de influência.

Ao mesmo tempo em que precisamos cultivar as “dúvidas saudáveis”, afundarmos em dúvidas incessantes nos deixará atordoados, sem rumo e apenas gastaremos energia e tempo. Por isso, é preciso também que haja certezas, que haja confiança. E, nesse ponto, um outro olhar ajuda imensamente. Antes de nós, muitos vieram. E devemos tirar proveito disso para progredirmos. Ainda não me deparei com uma situação – nem com um conhecimento – que não houvesse alguém que soubesse menos do que eu, e que não houvesse muitas pessoas que soubessem muito mais do que eu. Talvez eu seja apenas uma pessoa de sorte, mas acho que não. Acho que isso é algo bastante comum a todos nós.

Em uma entrevista, André Bernard4 contou como, certa noite, após assistir a um espetáculo de Martha Graham e Erick Hawkins ele ficou tão tocado que fez algo incomum a ele: correu até os bastidores ao final e apresentou-se a Hawkins e disse que gostaria de trabalhar com ele quando voltasse a Nova York. Na época, apesar de sua formação em engenharia, ele sabia que queria fazer algo diferente e já tinha se juntado a um grupo teatral, com o qual estava em turnê. Mas sua turnê acabou demorando para acabar e, quando foi procurar Erick, ele chegou ao estúdio de Martha Graham e Erick já não estava mais lá. Então, ele trabalhou com Martha Graham por dois anos, e depois encontrou Erick e trabalhou com ele também. Porém, após certo tempo, ele percebeu que havia algo no movimento de Erick e de seus bons alunos que ele não conseguia entender nem fazer. Ele compartilhou isso com Erick e perguntou se havia algo que ele pudesse fazer para chegar naquele ponto que queria, para se aprofundar. E Erick disse a ele que procurasse por Barbara Clark. Ele fez uma aula com ela, mas na época, o trabalho que ela fazia era muito diferente de tudo aquilo que ele já havia experimentado. Segundo ele, tudo parecia estranho, e ela também não explicava nada. Isso fez com que ele considerasse seriamente se devia voltar lá ou não. Com base na experiência que estava tendo, a dúvida tomou conta. E foi então que ele pensou:

(…) Erick é uma pessoa muito talentosa. Eu pude conhecê-lo muito bem. Ele é muito generoso com os alunos. Ele, de certa forma, me deu abrigo e me indicou livros na direção em que eu estava indo, coisas que eu precisava saber e não sabia. (…) Então, pensei, Erick é inteligente, talentoso e tem total integridade. Talvez – e eu não queria enfrentar esse fato – algo esteja faltando em mim. Então, decidi: vou voltar. Vou descobrir o que Barbara Clark está fazendo, e vou aderir a isto.” (p. 13, 2006).

Essa história de Bernard é muito emblemática da confiança, da entrega que precisamos ter para progredir. Ele deixou que a confiança que tinha em seu professor fosse maior que a dúvida que tinha em sua mente. Sua dúvida vinha do seu desconhecimento, da sua ignorância, enquanto que a confiança que demonstrou em seu professor vinha da humildade em aceitar essa ignorância e no fato de aceitar que seu professor certamente sabia o que estava dizendo, ainda que ele não conseguisse entender como. Se ficarmos limitados apenas às nossas próprias ideias, à nossa mente, à nossa visão, nunca cresceremos além de um ponto muito limitado. É claro que não devemos depositar nossa confiança em qualquer pessoa, mas é igualmente necessário sermos capazes de confiar em alguém. E devemos nos lembrar que é fácil confiar em alguém que nos diz tudo o que queremos ouvir, que apenas confirma nossos próprios pensamentos. Mas confiança verdadeira quer dizer se entregar quando há um caminho que não conseguimos ver bem ainda, quando há um desafio. Bernard não questionou a capacidade de Erick como professor, nem como guia ao indicar que aprendesse com Barbara. Já tendo testemunhado o conhecimento, talento e integridade de Erick, pensou acertadamente e aceitou a difícil realidade de que era a ele mesmo que faltava algo. Essa abertura é necessária no processo de aprendizado. Por estarmos em uma sociedade cada vez mais reativa, pode ser difícil nos colocarmos nesse estado de abertura, aceitação, não-violência, entrega, confiança. Pode ser difícil nos permitirmos esse respiro, sem projetar nossas inseguranças e sem tentar defender nosso ego ao vermos que falta algo em nós, passando a buscar faltas ou motivos obscuros naqueles que nos guiam. Pode ser difícil aceitar o quanto não sabemos ainda após apresentações profissionais, anos de estudo, anos de experiência de vida – e essa aceitação é essencial na mentalidade de crescimento, em oposição à insegurança que faz com que precisemos provar algo o tempo todo. Mas só temos a ganhar quando aproveitarmos a oportunidade de aprender e ouvir com aqueles que sabem mais do que nós, sem medo, sempre tendo a certeza de que há muitos, muitos mesmo que sabem mais do que nós, sempre.

Muitas vezes, a necessidade que temos de estar no controle pode ser preenchida quando damos o lugar do motorista para alguém em que confiamos. Isso não implica submissão cega, aceitação irrestrita, repressão de quem somos ou de nossos pensamentos e sentimentos. Na verdade, isso significa liberdade dos nossos pensamentos e comportamento condicionados, repetitivos, dos padrões que nem sequer percebemos e que podem não ser benéficos ou que podem ser limitantes. E, conforme vamos aprendendo a coreografar esse pas de deux da dúvida e da confiança, mais autonomia vamos ganhando. Como quase tudo na vida, dúvida e confiança não são, em si mesmas, boas nem ruins. Mas podem ser tanto um quanto outro, conforme as aplicamos na quantidade, na hora e nas coisas certas.

 

Precht, LM., Margraf, J., Stirnberg, J. et al. It’s all about control: Sense of control mediates the relationship between physical activity and mental health during the COVID-19 pandemic in Germany. Curr Psychol (2021). https://doi.org/10.1007/s12144-021-02303-4, 2021.

2 O vídeo pode ser acessado em https://www.youtube.com/watch?v=370HkIF3WMs&t=90s e o momento citado se encontra por volta dos 7 minutos.

Carol Dweck: A Summary or Growth and Fixed Mindsets. Pode ser acessado em https://fs.blog/carol-dweck-mindset/mus

Bernard, André; Steinmuller, Wolfgang; Stricker, Ursula. Ideokinesis: A Creative Approach to Human Movement & Body Alignment. North Atlantica Books, Berkely, 2006.

Kamalaksi Rupini

Kamalaksi Rupini

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Dançarina, professora, pesquisadora, coreógrafa e atriz, dedicada às artes, especialmente à dança clássica indiana. Com licenciatura plena em Artes Cênicas pela UFMG, também completou lá seu Mestrado em Artes. Desde a infância e ao longo da vida estudou ballet clássico, dança contemporânea, contato-improvisação, dança de salão, dança do ventre, capoeira angola e dança-teatro. Se apresentou nos maiores e mais tradicionais festivais da Índia e em outras partes do mundo, recebendo títulos importantes, como o prestigiado Nritya Ratna (“a joia da dança”) e sendo aclamada pelo público, imprensa e crítica do país. Começando o estudo da dança indiana no ano 2000, em 2007 se estabeleceu na Índia aprendendo o Bharatanatyam com a renomada Guru B. Bhanumati e aprendeu o estilo Bharatanrityam com Sraddha Prabhu Kumar. Teve a oportunidade rara de aprender também com uma devadasi (dançarina-sacerdotisa), Kanagambhujam. Tem feito pesquisas e coreografias que colocam a dança indiana em diálogo com o resto do mundo e outros estilos de dança, mantendo o respeito pela tradição ao mesmo em tempo que traz inovação e criatividade.