O Flamenco Brasileiro e a retomada da agenda cultural pós pandemia – desafios, regionalidades e perspectivas

Crédito das Fotos: Cia Del Puerto. Foto Gabriela Souza

Chegamos na metade do ano de 2022. Hoje, 14 de julho, dia em que finalizo esse texto, já se passaram 2 anos e 4 meses, ou se preferirem, 855 dias da comunicação oficial de Tedros Adhanom, diretor geral da OMS, declarando PANDEMIA mundial do Novo Coronavírus. Num contexto ideal, hoje, estaríamos com a cobertura vacinal mais próxima dos 100%, teríamos mais apoio do estado para efetivação de leis de fomento e incentivo à cultura e de manutenção de fomentos emergenciais. Talvez tivéssemos até condições de realmente abolir o uso das máscaras e poderíamos ter os espaços culturais mais próximos da lotação total com segurança, com aquele burburinho das filas de entrada. Mas infelizmente, a realidade ainda não está tão próxima desse ideal tão almejado por nós artistas.

Apesar disso, muita coisa boa voltou a acontecer. Estamos vivendo num ambiente um pouco mais otimista, de retomadas, de esperança e novamente, de vida. Tenho observado pelas redes sociais a ocorrência de muitas ações artísticas e culturais pelo Brasil afora, dos grandes festivais ao vivo aos pequenos encontros, ainda virtuais.

Os pequenos e os grandes eventos presenciais, especificamente aqueles que incluem dança em suas programações, retomam pouco a pouco suas atividades. Para mencionar alguns, Palco Giratório (nacional), Virada Cultural (São Paulo/SP), Noite dos Museus (Porto Alegre/RS), têm movimentando centenas, ou em alguns casos, até milhares de pessoas novamente. Em Porto Alegre, por exemplo, A Noite do Museus movimentou milhares de pessoas por um circuito de museus e entidades culturais pelas ruas da cidade. E o Festival Palco Giratório retomou em definitivo a ocupação de salas e teatros da capital.

Ambos eventos realizados em Porto Alegre, tiveram uma programação de artes cênicas bastante plural. Mas para falar a verdade, confesso que ainda sinto falta de ver mais DANÇA nessas agendas. Flamenco então, que é a minha especialidade, pode-se dizer que é artigo raro, eventualmente aparece ou é lembrado pelos curadores e organizadores das programações. Sinto falta desse espaço e desse incentivo aqui pelo Sul e intuo o mesmo sentimento de meus pares – e a maior prova disso está na iniciativa de grupos profissionais e artistas solo de Porto Alegre em realizarem suas propostas de forma independente. Assim, para sublinhar um pouco mais esse meu ponto de vista de aridez curatorial em relação à linguagem flamenca e, por outro lado, paralelamente, traçar um breve levantamento e delinear minha busca pela retomada das programações no universo do flamenco, busquei informações sobre alguns projetos, de coletivos ou artistas solo de flamenco, em todas as regiões do Brasil.

Para começar, apresento as impressões gerais do que está mais próximo de mim, ou seja, do Rio Grande do Sul, da cidade de Porto Alegre. Observemos com atenção o seguinte informe: em cerca de dez dias, entre meados dos meses de maio e junho, cinco núcleos de arte flamenca realizaram espetáculos inéditos ou shows de reapresentação de seus repertórios. Segundo informações colhidas, apenas um deles foi realizado com subsídio público e inserido numa programação anual de dança, à cargo da Coordenação de Dança da Secretaria Municipal de Cultura – todas as demais produções, foram realizadas por bilheteria. E consideremos a peculiaridade do flamenco em relação a formação dos elencos que compõem a cena: além de bailaoras (bailarinas) e bailaores (bailarinos), geralmente estão presentes músicos que executam a trilha sonora ao vivo, e dependendo do espaço artístico, também estão envolvidos técnicos de som, de luz, de cenografia, de figurino e todo os demais profissionais que usualmente compõem as fichas técnicas.

Um desses projetos realizados no Rio Grande do Sul foi o de um grupo formado especialmente para compor um novo espetáculo. O ‘Isso Não É Um Grupo’ foi um projeto independente que surgiu na pandemia, inicialmente pensado para as telas, com artistas movidos não só pela vontade de experimentar no audiovisual, mas também pela necessidade de expressão durante ao auge do Covid-19. Essencialmente, foi o encontro de quatro artistas e suas pesquisas pandêmicas, que por serem investigações muito pessoais, acabaram trazendo elementos biográficos e muito diversos para o processo criativo. Emily Borghetti é artista do flamenco, envolvida com essa linguagem há mais de 20 anos. Paola Kirst é musicista, artista da voz e do improviso. Rafa Costa também é músico e mergulha nas muitas referências rítmicas aqui do sul. Pedro Borghetti é músico e traz em seu trabalho autoral o bombo leguero, um instrumento que acolhe muito bem os ritmos latino americanos e flamencos. Detalhe interessante, é que o fio condutor que se manifesta como comum entre eles é o flamenco, pois todos tiveram contato com a linguagem em algum momento de vida. É assim que o Isso Nâo É Um Grupo propôs sua estreia presencial em julho de 2022, com as múltiplas camadas do flamenco, o uso da tecnologia e do improviso como processo de criação, a forte influência do ambiente musical sul-americano e as inúmeras contribuições da fricção dessas interfaces criativas, transpondo para a cena ao vivo as investigações que aconteceram, à princípio, no universo online.

Isso Não É Um Grupo. Crédito Vinícius Angeli

A Cia de Flamenco Del Puerto, também movida pela imensa vontade de estar outra vez em cena, inspirada no contexto de pluralidade que o flamenco carrega em si e encorajada por sua tradição de experimentação cênica, voltou à cartaz rememorando alguns números de seu repertório e apresentando novas partituras e novos jogos de cena com inspiração na performance e no flamenco contemporâneo. Esse processo criativo inédito foi especialmente regado pela ambiência pop e urbana que traz o icônico Bar Ocidente, espaço de diversidade da cena noturna da cidade de porto Alegre, onde aconteceu a mini temporada. Foi um convite aberto a todos os públicos ao multiverso do flamenco, essa linguagem artística que dialoga com fluidez com múltiplas influências e é plural desde seu surgimento. “Del Puerto – Flamenco no Ocidente”, colocou novamente em cena todo o elenco fixo do grupo, além de dois artistas convidados, em duas apresentações de estreia. O show foi promovido de forma independente, dentro da programação de artes cênicas do Projeto Espaçonave (também independente), idealizado e produzido pelo Teatrofídico, grupo teatral da capital gaúcha.

Cia Del Puerto. Crédito Gabriela Souza

E não posso deixar de mencionar a livre iniciativa do Tablado Andaluz, tradicional espaço gaúcho de ensino e cultura flamenca, que após quase dois anos sem atividades artísticas presenciais, retomou sua programação de shows regulares – os tablaos flamencos – que acontecem todas as sextas-feiras, com elencos que revezam artistas flamencos locais, nacionais e internacionais.

Numa avaliação preliminar e despretensiosa, percebo as iniciativas neste contexto desafiador, como uma necessidade imperativa de expressão, mesclada a grande necessidade de retomar ganhos regulares com nosso trabalho – acrescido de uma enorme dose de coragem. Sim, porque por essas bandas do sul, além do vai-e-vem das ondas de contaminação por Covid que ainda persistem, já temos a realidade do intenso frio de outono-inverno, que, por vezes vem acompanhado de chuva e afasta concretamente o público das atividades (especialmente noturnas) em teatros, salas, restaurantes e bares.

Tablado Andaluz. Acervo do grupo

Vamos agora direto do vento minuano do Rio Grande do Sul para o calor aquoso do estado do Pará. Tomo a magnífica cidade de Belém como referência de informação para nossa região norte. Estive por lá em 2015 com o espetáculo Las Cuatro Esquinas (Cia de Flamenco Del Puerto) e pude testemunhar a paixão dos belenenses pelo flamenco. Por lá, Cassius de La Cruz, esteve envolvido com sua companhia, a Cia Flamenca Do Pará, no 13º Encontro Internacional de Dança do Pará, ocorrido entre os dias 09 a 12 de junho de 2022, no Theatro da Paz, em Belém. Nesse ínterim, a preparação dessa participação da companhia paraense no festival teve um elemento muito especial, que foi a vinda da reconhecida professora e verdadeira formadora de gerações flamencas pelo Brasil, a artista Yara Castro, radicada em Madrid há mais de 15 anos. Yara fez a preparação coreográfica e cênica das integrantes do grupo, e ao lado de Cassius, também movimentou oficinas formativas durante o encontro. Considerando questões burocráticas e financeiras, com certeza essa foi uma corajosa movimentação internacional de redes artísticas e da economia criativa, para qualificar e fortalecer um evento local.

Da região nordeste do Brasil, compartilho pontos de vista e notícias artísticas de duas bailaoras. A primeira delas é a flamenca Karina Leiro, que reside hoje em dia em Los Angeles, onde segue atuando como bailarina e professora de baile flamenco. Karina desenvolveu toda sua carreira em terras brasileiras, entre idas e vindas principalmente nos estados da Bahia e Pernambuco, nos quais atuou, dirigiu, coreografou e produziu intensamente. Atualmente ela está em pleno processo criativo autoral de um solo, que propõe o flamenco como linguagem central, mas que também quer se desviar bastante do ideário tradicional, de quando se imagina uma dança flamenca. Movida por uma enorme inquietação particular, despertada a partir de um recente diagnóstico de transtorno do espectro autista, de descobertas e de enfrentamento a processos de incompreensão, com lidas relacionadas a saúde mental (ainda tão desconsiderada como fundamental para a saúde geral do indivíduo), com preconceitos e silenciamentos, ela procurou a artista flamenca Alessandra Kalaf para dirigi-la durante o processo de criação, por meio de encontros virtuais. Karina também posiciona o projeto como um grito político contra todas as opressões. A linha dramatúrgica que está investigando e propondo, pode converter-se em espetáculo solo ao vivo ou uma vídeo-dança. A trilha sonora ainda está sendo pesquisada, mas além da sonoridade flamenca, Karina busca outros ritmos e sons, inclusive os incidentais e paisagens sonoras inspiradas no cotidiano. De todo esse processo, ela menciona que “entendeu que prefere dançar o que gostaria de dizer”, e que essa experiência é “necessária para sua sobrevivência, além de oportunidade de continuar criando”. O projeto que ainda não tem um nome, é independente, pretende fazer uma mostra de processo assim que possível e está aguardando por uma oportunidade de estreia.

Rita Bastos de Salvador (BA) é a outra artista com quem conversei e que também compartilhou seus anseios e inquietações em relação à produção em flamenco. Ela estava justamente num processo de retomada de trabalhos artísticos em 2020, com apenas três meses de reabertura de seu estúdio, quando foi declarada a pandemia. Conta que também que, durante esse período, tentou inserir projetos nas leis emergenciais locais decorrentes da Lei Aldir Blanc em 2020 e 2021, mas os editais não acolheram as propostas. Apesar de ser uma artista e produtora bastante conhecida na cidade, transitando amplamente pela cena cultural soteropolitana, Rita manifesta sua inconformidade e sua frustração com a pouca inserção do flamenco nos roteiros culturais da cidade e pelo não acolhimento dessa arte nas oportunidades de trabalho ditas “mais comerciais”, tanto por parte das políticas públicas, como pela recepção do público, que ainda parece esperar por atuações mais tradicionais. O que as duas artistas mais fortemente ressaltaram em suas falas foram as inquietudes e um evidente desabafo em relação à falta de acolhida – da empatia pessoal à falta de vontade política, com as quais ambas têm de encarar.

A região centro-oeste me pareceu apresentar uma condição mais ímpar entre todas. Porém, antes de prosseguir com meu inventário flamenco, convém lembrar que, recentemente, assistimos um acontecimento que pode ser classificável como absurdo por parte de um ente político da cidade de Campo Grande (MS), tentando impedir a prática de uma determinada modalidade de dança por crianças em idade escolar, por considerá-la uma “dança sensual”, ou ainda, que “faz alusão às atitudes erotizadas ou a atos libidinosos”. A ação foi amplamente repudiada pela classe da dança e muitas manifestações contrárias foram registradas inclusive em âmbito nacional, mas, absurdamente, o projeto de lei 210/2021, que foi discutido na Assembleia Legislativa do Estado do Mato Grasso do Sul, teve apenas três votos contrários à sua execução. A lei foi aprovada e agora segue para a redação final. Parece-me que o tanto de empoderamento e inteligência social que é possível despertar em crianças que têm acesso a práticas artísticas e cênicas durante sua formação – música, dança, teatro, literatura, artes plásticas – carrega em si um desconforto e causa um certo incômodo aos que abraçam essa ideologia distorcida. Pessoalmente, sigo numa forte torcida para que esse projeto inútil e obsoleto não viceje.

Seguindo agora meu levantamento regional, verifiquei que no centro-oeste há muitos centros de formação e grupos de estudos em flamenco. Existem escolas com mais de 30 anos de existência, com inúmeros praticantes envolvidos nos projetos de ensino da dança flamenca.  Porém, os indícios apontam para a constatação de que há pouco ou nenhum incentivo a projetos artísticos de praticantes profissionais da linguagem flamenca. Conversei com duas artistas da região, uma de Goiás e outra de Mato Grosso do Sul. Maria Helena Petengill está à frente do tradicional Embrujos de España, grupo batizado com esse nome pela consagrada artista, radicada há décadas no Brasil, em Curitiba/PR, a argentina Amália Rodrigues La Morita. O grupo completou 34 anos em 2022, e celebrou essa trajetória com o documentário “Memórias”, realizado em 2021 com recursos emergenciais da Lei Aldir Blanc, por meio do FMIC – Fundo Municipal de Investimento Cultural, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande. Conversando com Maria Helena, ela me menciona, porém, que não se adaptou bem ao universo online e voltou às atividades presenciais com aulas regulares, assim como com sua atuação em dança-terapia (prática na qual é pós graduada), somente em abril de 2022, retardando assim a retomada de eventos artísticos do grupo. Ela conta ainda que, depois de alguns anos, voltou a ter vontade de coreografar para si, até como forma de expressão que emergiu ainda mais fortemente durante o período da pandemia, mas que ainda não surgiu nenhuma oportunidade de apresentar-se publicamente. Ana de Pellegrin, do Coletivo Flamenco de Goiânia (GO), conta que estão muito lentamente retomando seus encontros de estudo. A dificuldade se instaurou de forma determinante durante a pandemia e segue mesmo em tempos atuais, porque transformou muito a dinâmica da vida de algumas pessoas. Uma integrante do grupo, por exemplo, mudou de cidade e só consegue estar com o grupo uma vez por mês. Outras duas tiveram bebês nos últimos dois anos e estão voltadas para essa necessidade parental. Então a retomada é lenta e os encontros tem acontecido somente com três pessoas. Ana comentou ainda que percebe na região um movimento mais intenso em relação à área da música flamenca, mas que artistas e grupos de baile acabam se concentrando mais no universo dos projetos pedagógicos com a dança, do que nos processos de criação e produção artística profissional. Há notadamente um imenso potencial de criação e produção na região, impulsionado por praticantes de amplos níveis de interesse. Além disso, existe também uma intensa movimentação política de universidades, associações e colegiados, para que a dança – como prática, como cadeia produtiva e como patrimônio cultural – receba o respeito que merece. Mas desserviços como o citado anteriormente, acabam por diminuir as chances de que políticas públicas culturais ou mesmo a própria comunidade, abrace a dança com mais confiança.

Deixei por último, finalmente, a região sudeste, que preliminarmente parece ter uma condição de produção e formação de público mais próximas do que eu avalio como ideal, em termos de aspiração artística profissional. Conversando com duas artistas da região, apresento alguns pontos interessantes sobre suas produções. Alessandra Kalaf, bailaora e diretora flamenca da cidade de São Paulo, fez uma abertura de processo do seu novo projeto “A borboleta no cubo de vidro”. Com temática feminista, Kalaf propõe para a dramaturgia de cena um diálogo entre linguagens, sendo elas a dança flamenca contemporânea, o teatro, a performance e a música, interseccionadas ainda com outras disciplinas que colaboraram com o processo criativo, como a psicanálise e a antropologia. É uma atuação solo, “de temperamento profundo e terno”, com partituras e improvisos coreográficos que mergulham em trechos biográficos e em memórias coletivas sobre os constantes apagamentos da presença feminina no mundo. O projeto fez a pré-estreia no CRD (Centro de Referência da Dança), um espaço público e cultural da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, dedicado à preservação e fomento da dança. O desenvolvimento desse trabalho foi e segue sendo subsidiado pela Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo.

Do estado do Espírito Santo, trago informações sobre o trabalho de Ivna Messina, artista da dança, mas que transita por outras linguagens como as artes visuais e o audiovisual. Ivna está sediada em Vitória, Espírito Santo, onde desenvolve suas montagens, sendo o espetáculo Sirena seu terceiro projeto solo. Previsto para estrear em setembro, com ensaio aberto já programado para julho, o trabalho tem o ponto de partida em figuras híbridas entre o humano e o animal, como a sereia, a harpia e o fauno, conhecidos mitos da cultura greco-romana. A proposta é de que essas figuras serão recriadas a partir do gestual e de elementos de vestimenta e som típicos da linguagem flamenca, como a bata de cola (vestido com cauda), o mantón (chale com franjas) e os sapatos com tachinhas especiais cravadas nos saltos e na borda anterior de cada par. Segundo ela, essas figuras eram marginalizadas e a transformação em híbrido era tomada como um castigo dos deuses. “Trago eles como relação com meu trabalho, que defende o impuro, o híbrido e a mescla, e também busco traçar uma relação com a violência que o impuro sofre, falando um pouco de necropolítica e resistência” – afirma Ivna. Sirena tem apoio do Funcultura, da Secretaria de Cultura do Estado do RS.

Kalaf e Messina têm trabalhos paralelos, ligados à docência flamenca, em seus centros de formação e também se envolvem com a proposição de oficinas livres, abertas a diferentes tipos de público. Alessandra, no CRD em São Paulo, propõe a “Vivência Flamenca com Ale Kalaf, corpo, pertencimento e limites”. Conforme Alessandra, o objetivo principal da vivência “é tentar responder a essas questões através do corpo”. O público alvo é aberto, ou seja, para qualquer pessoa interessada participar. Já Messina está envolvida com a proposta do projeto Desvios, que busca oferecer cinco oficinas com artistas da dança do estado do ES que tenham abordagens que ‘desviam’ um pouco do senso comum, quando se pensa no universo da dança. Aí se encaixou perfeitamente seu projeto ‘Isso não é flamenco’, que convida diferentes artistas de diferentes linguagens para criarem juntos, ou seja, tendo como premissa as trocas entre os artistas para o desenvolvimento de uma pesquisa individual.

Alessandra Kalaf. Crédito Ana Nicolau

O Brasil é enorme e é nesse tipo de coleta de informações que essa continentalidade se manifesta a olhos vistos. Esse breve e extraordinário passeio pelas regiões foi um desafio para mim. Gostaria muito de ter conversado com mais artistas, colhido mais informações, mas tenho total certeza de que esse pequeno ensaio não abarcaria o tanto de arte e de inspirações criativas com que me depararia. Sigo, portanto, com minhas considerações finais – porém não definitivas – sobre a produção em flamenco no Brasil.

A pandemia foi brutal e segue repercutindo suas sequelas por entre o multiverso cultural. Todo o setor artístico foi duramente afetado e a formação de público para a dança, que já era bastante complexa, está ainda mais difícil. O cenário público e privado das políticas culturais está enxutíssimo e extremamente concorrido. Entretanto, esse breve levantamento setorial – que tem humilde pretensão de amostragem e, de nenhuma forma, pode ser tomado como um desenho absoluto dessa produção – nos incentiva a acreditar que, contrariando o atmosfera de crise na cultura, há intensa presença e enorme potência de criação e pesquisa cênica flamenca, em absolutamente todas as regiões do país.

Pesquisas recentes no campo das artes cênicas e interculturalidade apontam que o flamenco surgiu a partir de uma grande mistura de referências, entre elas, influências ciganas, africanas, árabes, indianas, sul, norte e centro-americanas, além das europeias. Em conjunturas históricas de resistência e de luta dos artistas para manutenção de seus repertórios e ganhos regulares, os shows de flamenco eram inseridos em programações super variadas, interseccionando suas múltiplas camadas – toque, canto, dança – com outras disciplinas artísticas (há comprovações materiais desses indícios). Eram os famosos espetáculos de vaudeville, ou, os shows de variedade, onde música, dança e interpretação estavam em perfeita comunhão artística.

Se o flamenco não encontra mais esse espaço nas agendas contemporâneas de programação em dança, não é por seu histórico ou pela ausência de artistas criando, produzindo e pesquisando, mesmo no atual ambiente de precarização cultural e aprisionamentos ideológicos. As razões desse enigma são múltiplas e complexas de se analisar. Intuo que, inacreditavelmente, a linguagem flamenca ainda está associada a um certo conceito de debilidade – poética e estética, que vem ainda contaminado por traços de categorizações estigmatizantes. Continuo sublinhando que há uma viciosa falta de interesse por parte de gestores, programadores, curadores – e até mesmo de colegas artistas – em observar com mais interesse toda essa ativa movimentação do flamenco brasileiro, que de uma forma ou outra, acontece com força e em todos os rincões.

Contudo, felizmente, apesar da falta de acolhimento de alguns ambientes artisticamente mais consagrados, outros espaços, mais conectados com a premente e necessária atitude de conexão com a pluralidade, começam a movimentar nesse sentido. Basta ampliar um pouco mais o foco: o flamenco brasileiro existe e continua a resistir.

Daniele Zill

Daniele Zill

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Faz parte do coletivo Del Puerto (Porto Alegre/1999), onde atua como intérprete, coreógrafa e produtora da COMPANHIA DEL PUERTO e professora de dança na ESCOLA DEL PUERTO, da qual é também diretora geral. Performer/criadora e orientadora corporal em trabalhos ligados à pesquisas feministas e de trajetórias. Premiada no Troféu Açorianos de Dança/RS com melhor Espetáculo em 2007, 2008 e 2012, Melhor Produção 2012 e 2016, Prêmio Funarte Klauss Vianna 2013, Prêmio de Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena em 2015, Prêmio FAC/RS 2018 de Circulação de espetáculos e Prêmio Festival Funarte Acessibilidança 2020/21. É graduada em fisioterapia, especialista em Reeducação Postural e Acupuntura, mestra em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS (2017) e autora do livro GESTO FLAMENCO (Edições Funarte,2020).