Madalena, a mulher que me convidou para dançar

Crédito das Fotos: Adriana Marcchiori

Hoje eu estou aqui para lhes contar a história da Madalena Alba (da minha Madalena Alba). Escrever sobre o processo de criação dessa performance somente agora, passados 10 anos de sua concepção (que foi 2013) e das muitas oportunidades de apresentá-la em diferentes inserções artísticas, me traz lembranças muito significativas e me reconecta com revelações importantes. Eu já vinha ensaiando esse mergulho, quando recebi a provocação do Portal MUD para desenvolver uma escrita ligada ao mês da mulher, o que então me deu o impulso e a dose certa de coragem que faltava. Não tenho com essas poucas linhas pretensão de artigo ou texto ensaístico, senão de um relato baseado na minha experiência de mulher e dançarina.  

Mas vocês devem estar se perguntando, afinal de contas, de quem ela está falando? Quem é essa tal Madalena? Ou, serão Madalenas? Me explico te convidando para essa leitura.

Madalena Alba é nome que recebeu uma das filhas da personagem central na peça teatral de Federico Garcia Lorca, ‘A casa de Bernarda Alba’, lançada em 1936. Li o texto dessa peça teatral pela primeira vez no final dos anos 90, logo que me aproximei do flamenco e acabei tendo os primeiros contatos também com a obra de Lorca (que era um apaixonado por essa arte). No livro, ele nos conta de uma Espanha profunda, conservadora e atrelada a rígidos fundamentos cristãos, onde uma mulher que fica viúva pela segunda vez, determina com rigidez que, além dela, suas seis filhas se fechem dentro de casa, se calem sobre suas expectativas e sonhos e cortem toda relação com o mundo exterior. Com a desculpa de cumprir o luto pela morte do patriarca da família, hipocritamente apoiada na moral e nos bons costumes, elas todas têm suas liberdades confiscadas.  

O então corajoso Lorca fazia uma óbvia referência ao sistema franquista que assolava seu país naquela época. Sistema que tolhia a expressão, usurpava liberdades e executava a sangue frio a quem quer que atrapalhasse seu governo autoritário e ditatorial. E assim aconteceu: Lorca foi fuzilado pelo regime no mesmo ano em que escreveu essa, que se tornou então sua última obra. Nesse texto revelador e audacioso, ele também sublinhou traços de personalidade e comportamento de cada uma das personagens da peça, todas mulheres – muito possivelmente na ânsia de dar destaque à própria presença feminina, que naquele ínterim, era quase sempre secundarizada na ficção (assim como na vida real). Ele centralizou sua escrita sob ponto de vista feminino e retratou com detalhes o machismo que achatava, ofendia e abusava, não obstante sendo inclusive reproduzido por mulheres, as quais certamente também oprimidas pelo patriarcado.

De lá para cá, pouca coisa mudou. Mas vou deixar esse assunto para mais adiante, porque antes quero contar a vocês um pouco mais sobre como a Madalena Alba de Lorca veio parar no meu corpo dançante.  

Em 2007 eu participei da concepção de uma peça de dança-teatro-flamenco onde fui convidada a dar forma a essa personagem. Na obra A casa, criação da Cia Silvia Canarim, sob direção de Décio Antunes, nascia a minha ‘primeira’ Madalena Alba. A peça foi um sucesso de público e crítica, fez duas temporadas nesse mesmo ano, recebeu indicações e ganhou prêmios locais. Foi um processo muito intenso para mim, não somente pela densidade e pela maneira como se desenvolveu a ideia criativa em si, mas porque durante a temporada de estreia, perdi minha mestra e grande amiga, Andrea del Puerto. Esse tsunami que misturou profundo luto, intensidade criativa, amadurecimento artístico e necessidade de descobrir como prosseguir, deixou vestígios importantes gravados na minha carne, pistas do que seria dali em diante a minha forma de expressar e dançar.

Alguns anos depois, em 2012, estreamos o espetáculo da Cia Del Puerto chamado Las Cuatro Esquinas e com ele tivemos um enorme êxito de recepção e de reconhecimento cultural, acontecimento que foi significativo para minha carreira e para a trajetória da Del Puerto. Não somente pelo reconhecimento do trabalho profissional que se formatou na mão de um grupo essencialmente feminino, que havia perdido sua diretora e fundadora, senão porque, justamente, reformulou a identidade e concretizou o caráter de coletividade que a companhia tem até hoje em seus processos de criação e produção. O espetáculo foi premiado em 9 das 12 categorias a que foi indicado no maior prêmio de dança do RS. Consolidou-se no circuito de editais, mostras e festivais, circulou pelo estado e pelo Brasil e foi assistido por um número de espectadores que nunca poderíamos imaginar.

Olhando para trás, posso afirmar com clareza que esses 5 anos, entre 2007 e 2012, significaram uma virada para mim. Foram um marco temporal, uma mudança aguda na forma de trabalhar, criar e me relacionar com outras criadoras e entes artísticos, enfim, uma fase decisiva, um antes e depois. Porém, na mesma medida em que a positividade dos acontecimentos me ergueu e estimulou a seguir nesse novo caminho que se mostrava, obviamente, a crítica corrosiva e a falta de empatia causaram impactos verticais. Não pretendo descrever as minúcias, mas fui literalmente aconselhada a me retirar do meritório cenário artístico e me ater à minha esfera flamenca – de onde eu nunca deveria ter ousado sair.

Foi um momento em que a sensação de apedrejamento, a constatação do não acolhimento e de abandono, a crença de achar que está sendo inoportuna, ou de que está fazendo algo proibido ou inadequado me derrubaram de forma avassaladora. Eu também havia tomado certas decisões profissionais as quais, naquela altura, não poderia retroceder. Eu me senti completamente sozinha e deslocada. Além disso estava voltando a transitar na universidade, depois de 12 anos de distanciamento e em uma área diferente da minha graduação, ou seja, um ambiente novo para mim. E assim eu chego ao ponto onde nasce a minha Madalena: em meio ao total caos pessoal.

Dar carne às dores, me ajudou a entendê-las, e de certa forma, ressignificá-las. Ela me abraçou tão forte, me acolheu e me ajudou a desentristecer. Sim, porque ela ri muito de si mesma, é debochada e bem humorada. Gosto de falar assim, ‘a Madalena’, na terceira pessoa, pois de fato foi um processo organizacional e terapêutico, e, sobretudo, foi uma maneira de eu expressar como me sentia, de dançar o meu caos e a minha dor, sem expor exatamente sobre os acontecimentos. E nesses 10 anos de atuação, quantas pontes importantes Madalena atravessou! E que lugares incríveis ela frequentou! E como causou assombro e risos essa Madalena. E quantas amizades ternas e verdadeiras ela firmou. Agradeço em especial aqui todas as minhas companheiras, artistas maravilhosas da peça Mulheragem, porto seguro da minha Mada: Juçara Gaspar, Juliana Kersting, Manu Miranda, Silvana Rodrigues, Iassanã Martins, Juliana Wolkmer, Catharina Conte que esteve no nosso comecinho, Rita Lendê que se uniu em uma ocasião, e a Guadalupe Casal que chegou para fechar essa roda de mulheres poderosas.

Contando agora um pouco mais sobre a parte prática dessa transmutação dançada: os laboratórios de criação tiveram experimentos cênicos baseados nas minhas vivências, no meu multiverso artístico e pessoal. Para me orientar cenicamente, chamei para perto a atriz, pesquisadora e minha parceira de Del Puerto desde sempre, Juliana Kersting. Ela foi fundamental nessa orientação técnica não só pela excelente profissional que é, mas porque conhecia bem de perto as camadas sensíveis que estavam coladas em cada gesto e intenção. A peça foi então dividida em três partes: memória, silêncio (no hay banda) e realidade – cada uma delas transitando por diferentes estados anímicos e registros de movimento. A concepção coreográfica, assim como a pesquisa de trilha sonora e o projeto de iluminação, também foram constituídos a partir dessas investigações acima citadas e configuraram o espaço, os ânimos, os sentidos. Ainda, estão também em cena outros panos de fundo, questões referentes à luta feminista e às dimensões simbólicas do ser humano, como morte, amor, loucura, alegria, desespero, afeto, desamparo, também serviram para mover o engenho dessa criação.  

É importante mencionar que a coreografia apresenta diversos signos da linguagem flamenca através do uso da bata de cola, do mantón e do abanico, gestos característicos de mãos e bracos, e claro, o sapateado – mas não exclusivamente eles. Eles aparecem ora referentes, ora antagonistas entre si. Existe uma atitude que pode categorizar a performance como flamenca, porém há momentos de grande distanciamento dela. E é justamente essa antítese (real e performática) que eu desenvolvo e apresento durante a performance. Há também momentos de improviso diretamente inspirados no modus operandi do flamenco, assim como há outros momentos de jogo livre com a plateia – uma ousadia que eu, despretensiosamente, quis arriscar e que acabou por se tornar o ponto máximo na atuação. Outro detalhe curioso é que a cena também inicia com uma situação de risco físico, já que eu estou girando e me movendo por todo o espaço cênico com a cabeça completamente coberta por uma rede fina, o que dificulta fortemente a visão e a referência espacial.

A Madalena encenada por mim é a filha de Bernarda Alba que fugiu da casa, aquela que ousou questionar e questionar-se. Ela é a Geni, a Carmen, a Elza, uma outra Madalena, ou quem sabe todas essas polimadalenas que habitam o memorial de nossas referências femininas mais revolucionárias. E podem considerar também que a Madalena aqui é uma palhaça-flamenca-burlesca e um mulherão-da-porra.

O fato é que a Madalena – tanto a minha quanto a de Lorca – grita bem alto sobre sua vontade de existir (e dançar), apesar do sistema, engessado, arrogante e conservador, dizer a ela que se cale e se recolha a sua insignificância. Parece cronologicamente discrepante, mas na Espanha de 1936 quando Lorca escreveu a peça e no Brasil de 2013, quando criei essa performance dançada, praticamente não se falava sobre sororidade. E muito pior do que isso, não se falava abertamente sobre violência de gênero, não se compartilhavam dados estatísticos sobre abusos sofridos por parceiros, o termo feminicídio nem sequer existia em 2013 e o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher” ainda era regra.

Recomendo fortemente que você denuncie, peça ou ofereça ajuda caso seja necessário – e não julgue menor o seu problema ou de sua amiga/vizinha/conhecida, ninguém conhece sua dor e como ela nos faz desmoronar e querer desistir. Pratique a sororidade, aconselhe com carinho, acolha, elogie, admire, respeite e inspire outras mulheres a fazerem o mesmo.

E meu convite final para todas vocês que leram esse relato até aqui é: dancem!

Principalmente quando todas e todos estiverem olhando (risos, porque acabo sempre escrevendo isso nos meus textos – mais risos!). Se apaixonem por vocês e por seu lindo corpo, vivo e em movimento. Não permitam que ninguém lhe dite regras, ou que lhe deprecie com base em opinião. Vocês, cada uma à sua maneira, são perfeitas, nunca duvidem disso!

Com afeto, Daniele.

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Daniele Zill

Daniele Zill

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Faz parte do coletivo Del Puerto (Porto Alegre/1999), onde atua como intérprete, coreógrafa e produtora da COMPANHIA DEL PUERTO e professora de dança na ESCOLA DEL PUERTO, da qual é também diretora geral. Performer/criadora e orientadora corporal em trabalhos ligados à pesquisas feministas e de trajetórias. Premiada no Troféu Açorianos de Dança/RS com melhor Espetáculo em 2007, 2008 e 2012, Melhor Produção 2012 e 2016, Prêmio Funarte Klauss Vianna 2013, Prêmio de Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena em 2015, Prêmio FAC/RS 2018 de Circulação de espetáculos e Prêmio Festival Funarte Acessibilidança 2020/21. É graduada em fisioterapia, especialista em Reeducação Postural e Acupuntura, mestra em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS (2017) e autora do livro GESTO FLAMENCO (Edições Funarte,2020).