Crédito das Fotos: Katherine Dunham em Tropical Revue (1943), no Martin Beck Theatre de Nova York. Foto Alfredo Valenti
Katherine Dunham[1](1909-2006) foi uma dançarina, coreógrafa e antropóloga estadunidense que se inspirou em um intenso estudo das danças afrocaribenhas e afro americanas para a criação de espetáculos que combinavam dança, música e teatro. É conhecida pelo desenvolvimento de seu próprio método, que é ensinado até hoje sob o nome de Técnica Dunham (ou Dunham Technique), resultado da soma de seu estudo de danças afrodiaspóricas à dança moderna estadunidense. Coreografou diversos ballets inspirados na movimentação afrodiaspórica, como L’Agy’a (1938) e Shango (1945), que tiveram grande relevância no território dos Estados Unidos e em turnês internacionais.
Quando discente da Universidade de Chicago e jovem bailarina, ganhou uma bolsa da fundação Julius Rosenwald em 1936 para fazer uma etnografia das danças do Caribe, sob orientação do antropólogo Melville Herskovits. A pesquisadora passou pela Jamaica, Martinica, Trinidad e Haiti, onde, neste último, dirigiu maior atenção para as danças tradicionais e a religião Vodun. Essa pesquisa lhe rendeu as monografias Journey to Accompong (1946), Island Possessed (1969), e sua dissertação de Mestrado, Dances of Haiti (1947), que em 1957 foi traduzida para o francês e publicada com prefácio escrito por Claude Lévi-Strauss. Adicionalmente às monografias de cunho acadêmico, a autora também publicou seu livro de memórias, A Touch of Innocence (1980).
Para além da estética afrocaribenha inserida em sua linguagem artística, Dunham trazia em suas obras outras manifestações culturais do Atlântico Negro (GILROY, 2001), incluindo temas brasileiros, como é o caso de Batucada (1939), Adeus Terras (1939), Bahiana (1939) e Choros (1944). No ano de 1950, fez uma curiosa passagem pelo Brasil que significou nada menos do que o estopim da promulgação da primeira lei anti racismo no país. No dia 11 de julho de 1950, Dunham e sua companhia estavam em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo quando ela aproveitou o intervalo entre suas obras para expôr aos repórteres que o hotel em que se hospedara havia se recusado a recebê-la, por ser uma “mulher de cor”. Após uma grande repercussão pública, que envolveu defesas públicas do então deputado e sociólogo Gilberto Freyre, é proposto à Câmara dos Deputados o projeto da lei que posteriormente ficou conhecida como Lei Afonso Arinos (1951), que proíbe estabelecimentos de se recusarem a servir, hospedar, atender ou receber cliente por preconceito de raça e cor[2].
Naquele momento, Dunham nutria um laço pessoal com o dramaturgo e ativista negro Abdias do Nascimento e com o Teatro Experimental do Negro. Durante sua passagem no Brasil, escreveu contribuições para o Jornal Quilombo, editado por Nascimento, a respeito de sua impressão sobre as relações raciais do Brasil e a sua expectativa frustrada de democracia racial, mencionando um debate com Gilberto Freyre em um jantar durante sua estadia em São Paulo em 1950, conforme destacado por Basques (2021, videoconferência)[3].
Na dança moderna brasileira, o legado de Dunham é transmitido a Mercedes Baptista, bailarina que, sendo parte do Teatro Experimental do Negro, tornou-se aluna da Dunham School of Dance and Theater, em Nova Iorque, no ano de 1950, por intermédio de Abdias do Nascimento. Agregando o ensinamento de Dunham Technique à sua própria pesquisa de danças tradicionais do Brasil, Baptista é hoje considerada a maior responsável pela sistematização da dança afrobrasileira (VILLEROY, 2021).
Katherine Dunham em Rara Tonga, que estreou em 1937. Foto Studio Iris
Pesquisar dançando, dançar pesquisando
Eu sabia que a dança era algo que eu tinha que fazer, sobre isto eu não tinha escolha. (…) Eu sabia que ela [a dança] era respeitada, ela tinha alguma posição importante no mundo da arte, mas não tinha nenhuma posição de importância no mundo acadêmico. (…) Meu problema, meu grande impulso naquele tempo era me manter na posição acadêmica que a antropologia me dava, e ao mesmo tempo continuar nessa minha grande atração pelo movimento, pelo movimento rítmico.[4]
Sempre interessada no movimento e nas formas expressivas dos povos afrodiaspóricos, Dunham teve facilidade para aprender as danças no Haiti, o que foi decisivo para sua recepção pelos haitianos. Sua presença no campo era facilitada porque, apesar dos tabus colocados às mulheres para, por exemplo, tocar alguns tambores, ela era autorizada porque era lida por eles como uma emissária dos povos negros perdidos da América do Norte (nan guinin) (DUNHAM, 1983:xxiv).
De maneira inovadora para a época, ela incorporou em seu trabalho de campo o aprendizado minucioso das danças que pesquisava. Além de aprender as danças, a autora relata em Dances of Haiti (1983) que também se familiarizou com alguns instrumentos e ritmos que forneciam acompanhamento musical para as expressões corporais. Ela aponta que o aprendizado musical foi parte fundamental de seu estudo das danças haitianas: “Muita escuta, registros feitos tanto pelo gravador quando por notação, e muitas horas de aulas particulares me familiarizaram superficialmente com as categorias rítmicas básicas e mais comuns” (DUNHAM, 1983:27, tradução livre).
Extrapolando ainda mais os limites de uma metodologia convencional em Antropologia para a época, Dunham inaugurou o método de pesquisa-para-performance (research-to-perfomance method) (CLARK apud OSUMARE, 2010), ou seja, a pesquisa antropológica que informa a criação de performances. A partir da pesquisa antropológica, Dunham criou uma nova técnica de dança moderna inspirada na sua pesquisa de danças afrocaribenhas, a Dunham Technique; fundou uma companhia de dança nos Estados Unidos com essa linguagem; e coreografou numerosos espetáculos, inclusive na Broadway. L’Agy’a, por exemplo, é um ballet de 1938 que encena a dança marcial agy’a, testemunhada pela autora na Martinica.[5] Uma das cenas deste ballet também traz para o público a Mazouk, palavra em creole que faz referência à dança mazurka, que era moda nos bailes franceses e que inspirou escravos libertos a se vestirem como seus colonizadores e dançarem a sua versão assimilada dos bailes de corte.[6]
Do lado da Antropologia, podemos nos inspirar em Katherine Dunham para imaginar novas formas de apresentação do conteúdo da pesquisa antropológica para públicos não especializados, traduzidos na linguagem artística – evidentemente, não sem consequências éticas e estéticas. Já do lado da dança, Dunham nos serve de inspiração porque a sua obra, ao popularizar as danças afrodiaspóricas e inseri-las em contextos mainstream, como a própria Broadway, nos incentiva a fortalecer contribuições entre a Antropologia e as artes da cena para fugir dos orientalismos estereotipados frequentemente presentes nas artes cênicas ao longo da história.
Referências
BASQUES, M. Katherine Dunham: dança e religiosidade em comunidades negras. In: Curso de extensão Vozes Negras na Antropologia, UNILAB, 2021. Videoconferência. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VcvB5e_leaM&t=5154s>. Acesso em julho de 2023.
DUNHAM, Katherine. Dances of Haiti. 3ª ed. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, University of California, Los Angeles, 1983. Disponível em: <https://archive.org/details/dancesofhaiti0000dunh/page/n5/mode/2up>. Acesso em julho de 2023.
DUNHAM, Katherine. Katherine Dunham on her anthropological films. In: Katherine Dunham Collection from the Library of Congress. Vídeo. Disponível em: <https://www.loc.gov/item/ihas.200003841/.>. Acesso em jul. 2023.
DUNHAM, Katherine. Katherine Dunham on dance anthropology. In: Katherine Dunham Collection from the Library of Congress. Vídeo. Disponível em: <www.loc.gov/item/ihas.200003840/>. Acesso em jul. 2023.
DUNHAM, Katherine. Trinidad, Haiti, Martinica fieldwork clips. In: Katherine Dunham Collection from the Library of Congress. Vídeo. Disponível em: <https://www.loc.gov/collections/katherine-dunham/?fa=original-format:film,+video&q=fieldwork>. Acesso em julho de 2023.
OSUMARÈ, Halifu. Dancing the Black Atlantic: Katherine Dunham’s Research-to-Performance Method. AmeriQuests, [S. l.], v. 7, n. 2, 2010. DOI: 10.15695/amqst.v7i2.165. Disponível em: https://ejournals.library.vanderbilt.edu/index.php/ameriquests/article/view/165. Acesso em: 3 jul. 2023.
VILLEROY, Érika. Ballet Folclórico Mercedes Baptista: entre brasilidade e negritude no Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960. Arte & Ensaios, vol. 27, n. 41, jan-jun 2021. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/2222-1448/24389>. Acesso em julho de 2023.
[1] Versão reduzida de um ensaio apresentado como trabalho final à disciplina “Tópicos de Pesquisa em Etnomusicologia”, ministrada por Rose Satiko Hijiki e Yuri Prado Brandão, no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da USP.
[2] Segundo registrado no site do Senado Brasileiro, disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/brasil-criou-1a-lei-antirracismo-apos-hotel-em-sp-negar-hospedagem-a-dancarina-negra-americana>. Acesso em julho de 2023.
[3] Uma aula dedicada à contribuição da autora à Antropologia foi disponibilizada no Youtube pelo curso de extensão Vozes Negras na Antropologia, Unilab, 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VcvB5e_leaM&t=5154s>. Acesso em julho de 2023.
[4] Katherine Dunham on dance anthropology. Vídeo retirado de Library of Congress, <www.loc.gov/item/ihas.200003840/>. Acesso em julho de 2023. Tradução livre.
[5] Para os olhos brasileiros, os movimentos se assemelham à capoeira: é uma dança feita entre duas pessoas que desferem rasteiras, golpes e esquivas. Sugere-se assistir o vídeo de registro de campo de 1936, neste link: <https://www.loc.gov/item/ihas.200003824/>, e compará-lo com a coreografia, neste link:<https://www.loc.gov/item/ihas.200003836/>.
[6] Sugere-se assistir o ballet criado por Dunham inspirado na Mazouk neste link: <https://www.loc.gov/item/ihas.200003810/>.