Crédito das Fotos: Cena de Jasão e Medeia, de Noverre
Durante todo mês de abril são frequentes os eventos promovidos por companhias de dança, escolas e órgãos culturais de diversos lugares para celebrar o Dia Internacional da Dança, que acontece no dia 29. A data, escolhida em virtude do nascimento do famoso mestre de dança Jean-Georges Noverre (1727-1810), foi estabelecida pelo Conseil International de la Danse (CID) em 1982 e desde então ocorrem as comemorações que ocupam todo o mês. Nos últimos anos, com a fácil difusão de informações pelas redes sociais, sobretudo no Brasil essa data se tornou ainda mais conhecida, assim como o aniversariante, que de fato é uma importante figura da dança ocidental.
Por que Noverre é tão famoso?
O mestre de dança francês ficou renomado por suas ideias reformistas para as danças cênicas apresentadas em uma série de cartas, escritas entre 1760 e 1810. Quinze dessas cartas foram traduzidas ao português por Marianna Monteiro em 1998 e publicadas juntamente com um estudo aprofundado da pesquisadora acerca de aspectos estéticos e históricos que circundam a obra – fica a dica de leitura! O grande legado de Noverre está na luta pela dança como uma linguagem própria e expressiva.
Até meados do século XVIII, as apresentações de dança aconteciam vinculadas à ópera. No caso da ópera italiana, as cenas dançadas – chamadas de divertimentos – ocorriam nos intervalos como um momento de divertir a plateia com exibições virtuosas de saltimbancos; já na ópera francesa, as danças estavam dentro da trama mas nem sempre contribuíam com a narrativa. O que Noverre reivindicava era que, quando inserida na ópera, a dança estivesse totalmente integrada à trama, e mais: acreditava na potência de um espetáculo de dança independente da ópera já que essa forma de arte, lançando mão da pantomima, conseguiria comunicar à plateia seus mais profundos sentimentos, independentemente do idioma falado, o que conferiria à dança um caráter de linguagem universal – que é o que os iluministas mais almejavam.
O termo ballet d’action, balé de ação, ou seja, um balé composto por ação fazendo uso da pantomima é frequentemente atribuído a Noverre. No entanto, ele não foi o único mestre de dança que apresentou propostas de reformas. O austríaco Franz Hilverding (1710-1768) e o italiano Gasparo Angiolini (1731-1803) também propuseram reformas nas óperas, sendo que este último chegou até a reivindicar o pioneirismo pelas concepções defendidas por Noverre. Pesquisadores como a italiana Arianna Fabbricatore (2015) afirmam inclusive que o crédito de “o grande reformista da dança” atribuído a Noverre seria arbritário e fruto de uma dominação cultural francesa. Muito embora o pensamento de Noverre tenha tido fortes ecos no percurso que as danças cênicas ocidentais percorreram nos anos subsequentes, a “evolução natural” daquele ballet d’action não é o balé clássico do século XIX, como se costuma afirmar.
Tomemos como exemplo o balé O Quebra Nozes, cuja versão de 1892 por Petipa e Ivanov com música de Tchaikovsky é montada até os dias de hoje. Apesar de ser um espetáculo de dança, contar uma história baseada em um conto de E.T.A. Hoffman e usar pantomima em alguns momentos, o ponto fundamental dessa obra (da “linhagem” originária da versão de 1892) não é a história que ela conta. Não é a pantomima. É a coreografia. Mesmo que a obra seja adaptada para diferentes bailarinos de diferentes companhias, o espectador de um espetáculo do clássico O Quebra Nozes espera a execução de coreografia: os saltos, as piruetas, os fouettés, os divertissements (as danças estilizadas representando diversos países.) E isso se distancia e muito das noções de Noverre de ballet d’action. O que caracteriza o “balézão” clássico é a virtuose, e Noverre, assim como Angiolini, criticava duramente a virtuose exibicionista. Por essa razão, afirmar que Noverre é importante porque suas noções de dança fundaram o balé clássico praticado hoje, a meu ver é um equívoco.
Então de onde vem a virtuose do balé clássico?
A peça faltante no quebra-cabeça da história da dança é a parte italiana do balé do século XVIII. Aqueles dançarinos-saltimbancos dos divertimentos italianos, tão renegados por suas acrobacias e por sua presença pouco refinada, tiveram papel fundamental na consolidação do que se tornou o balé no século XIX e têm reminiscências no virtuosismo ainda hoje. O estilo daqueles dançarinos era chamado de Grottesco, e a técnica de dança grottesca compreende passos acrobáticos que certamente influenciaram a técnica de balé configurada no século XIX.
Recentemente descobri um tratado de dança cênica de 1779 que ajuda a completar o enigma. É o Trattato Teorico-Pratico di Ballo, de autoria de Gennaro Magri, dançarino e mestre de dança. Na obra, Magri, além de analisar e descrever passos da dança cênica da época, inclui movimentos específicos do gênero grottesco. Quando Magri coloca no mesmo tratado os passos do gênero Sério e Grottesco, sintetiza as raízes de uma dança que, no século seguinte, culminará na técnica clássica. Apesar de ser escrito em uma linguagem complexa, misturando o italiano com dialeto napolitano e termos franceses, esse tratado revela importantes características da dança cênica europeia do século XVIII. Sua relevância vem sendo bastante reconhecida e na última década diversos pesquisadores se debruçaram sobre essa fonte com o intuito de conhecer essa faceta da história do balé. Em breve, haverá uma tradução para o português, fruto de minha pesquisa de mestrado em Artes Cênicas. Então, o leitor de língua portuguesa poderá usufrir de mais uma fonte primária para, junto com Noverre, conhecer e analisar criticamente a história (ou as histórias) da(s) dança(s) e suas reminiscências na atualidade.
Capa Trattato Gennaro Magri (1779)
Referências:
FABBRICATORE, Arianna B. L’action dans le texte: Pour une approche herméneutique du Trattato teorico-prattico di Ballo (1779) de G. Magri. CND Paris, 2018. Disponível em: https://hddanse.hypotheses.org/files/2019/03/Laction_dans_le_texte_CND_fabbricatore-1-115.pdf – acesso em 25/02/2022 (estudo recente realizado no CND de Paris sobre o tratado – em francês)
FAIRFAX, Edmund. Eighteenth Century Ballet, 2021. Disponível em:
https://eighteenthcenturyballet.com/ – Acesso em 26/08/2021 (site do pesquisador Edmund Fairfax, que estuda as danças do século XVIII. No site há a reprodução gráfica de alguns dos passos descritos por Magri – em inglês)
LOMBARDI, Carmela. Trattati di danza nel Settecento. Nápoles: Ist. Italiano per gli studi filosofici, 2018
MONTEIRO, Marianna. Noverre. Cartas sobre a dança. (tradução e notas da autora). São Paulo: Edusp, 1998.
Les Chaînons Manquants – mini-documentários sobre pesquisa desenvolvida pela Companhia Les Cavatines sobre o tratado de Magri: https://www.youtube.com/watch?v=kRJEMsK6-lE&t=24s (em francês)