Crédito das Fotos: Detalhe da cenografia da peça Baleia da E² Cia de Teatro e Dança. Foto - Hernandes de Oliveira
Penso nos teatros fechados por causa da pandemia, refletores apagados, poltronas sem uso, nenhum som… Tento imaginar quantos são os teatros desocupados ao redor do planeta: Muitos e muitos… E nós, artistas do palco, com talento e dedicação, produzimos vídeos e promovemos “lives” na tentativa de marcar nossa presença no mundo, mas a verdade é que estamos todos mergulhados em um grande e impressionante vazio. Vivemos da lembrança de nossas atividades, o que parece quase um sonho do qual desejamos despertar o quanto antes.
Quando comecei meu trabalho com a cena, lá nos anos de 1980, de imediato entendi que em minhas criações, na relação com meus colegas artistas, teria que fazer escolhas e muitas vezes renunciar a ideias que me pareciam adequadas, era já uma noção de conjunto. Com o tempo fui aprimorando essa percepção e entendendo que eu poderia silenciar mais, mesmo dentro da minha própria fala, “dizer” menos, não apenas como uma estratégia em benefício do todo, mas principalmente porque o silêncio e o vazio poderiam ser um modo muito eficiente de potencializar a obra.
Obviamente que isso não me veio do nada. Enquanto me inteirava da arte eu tive a felicidade de encontrar referências adequadas.
Durante vários anos fui ao cinema e ali aprendi quase tudo. Sempre me entusiasmou, por exemplo, os longos planos em filmes de diretores como Bergman, Tarkovski ou Wim Wenders (quem não se lembra de Paris Texas!). Aquelas cenas longas (sustentadas pela incrível fotografia ou pela expressão no rosto das atrizes e dos atores) moldaram meu gosto e me ensinaram a valorizar as pausas e os silêncios.
Nesse caminho ouvi boa música também. Entre elas a provocativa peça do músico John Cage chamada 4’33’’ (Quatro minutos e 33 segundos). Ela foi escrita para o piano e na partitura lê-se: TACET, que significa em latim “ele se cala” e indica que tal instrumentista da orquestra deve permanecer em silêncio durante a execução de determinado trecho da obra. Em 4’33’’ TACET se aplica a todos os três movimentos dessa peça musical. Mas durante a exibição ao vivo desta obra, o silêncio persistente acaba apontando para sonoridades que surgem dentro do vazio, barulhos internos do corpo, ranger das cadeiras na sala de concerto, murmúrios da plateia… Trata-se de um vazio como potência.
Em outro momento, numa exposição da Bienal de Arte de São Paulo dei de cara com um dos monocromos em azul de Yves Klein, uma tela toda pintada de um azul intenso que revelava um belo e sofisticado “espaço metafísico”. Depois estudando esse artista me regozijei com a descrição de sua exposição “O Vazio”. Quem a visitou não pôde encontrar nenhum quadro nas paredes, mas apenas a galeria esvaziada de objetos e pintada de branco. Através desse aparente vazio, “um vazio que faz nascer todas as coisas, ao mesmo tempo origem e fim”, apoiado na filosofia zen e num certo espírito dadaísta, Klein propunha uma arte livre de influências, onde as pessoas pudessem se concentrar na realidade de suas sensações e não na representação.
E sim! No Brasil frequentei Niemeyer e experenciei as longas caminhadas por suas passarelas e corredores, que ligando um ponto a outro no espaço, sempre me pareceram sugerir a possibilidade da contemplação. Aos detratores do escultor/arquiteto digo sempre que ele fez parte da minha formação e insistentemente me convenceu da importância da pausa e do silêncio.
Mas se esses e tantos outros artistas, com suas obras radicais e provocativas me guiaram pela vida, foi só recentemente que entrei em contato com a expressão “MA” e pude descobrir que aquele modo de estar no mundo dos japoneses tem muito a ver com minhas buscas artísticas. Para a pesquisadora Michiko Okano o “MA” está presente quase que de forma intuitiva nas artes, arquitetura e nas relações interpessoais daquele povo, é uma potência, um devir. Segundo Okano podemos tentar traduzir o “MA” como um “tempo necessário de preparação para o que está por vir”. No ocidente o vazio normalmente é tido como um espaço onde não há nada, mas no “MA” pode ser identificado como esse “espaço radicalmente disponível”.
Nesses meses de pandemia fiquei em casa e entre um trabalho virtual e outro pude refletir um pouco sobre essa grande parada (necessária) do planeta, um mito já contado por Raul Seixas, nosso maluco beleza, em seu profético “O dia em que a terra parou”. Uma profecia irrealizável e delirante, mas agora parece que chegamos tão perto!
Desde a revolução industrial (ou desde sempre) nós humanos trabalhamos muito, produzimos loucamente, falamos sem parar, pensamos sem parar, refletimos, inventamos coisas, progredimos, consumimos, matamos, desmatamos, perdemos dinheiro, ganhamos, pedimos a palavra, insistimos na nossa posição, fazemos muito barulho… E poluímos.
Agora seria a hora de parar, parar de verdade! O corpo terráqueo está implorando pelo silêncio, pelo vazio “radicalmente disponível”.
Precisamos apagar a luz pois estamos muito doentes. Mas não somos capazes dessa pausa. O mercado (bolsa de que valores?) prova que não somos capazes dessa pausa, a necessidade de sobrevivência e as grandes e vergonhosas desigualdades econômicas e sociais provam que não. Nossa ansiedade, vaidade, o desejo desesperado de ser visto, de ser ouvido, o medo da morte, o medo de estar só e todas as nossas “humanices” não nos deixam parar.
No entanto podemos nos inspirar estrategicamente na arte e entrar agora no “modo pausa”. Nossos teatros esvaziados já vivem assim. Então fique em casa se puder, se não puder, use máscara, fique em silêncio, fale menos. Podemos até nos permitir, num jogo semiótico criativo, concluir que o coronavírus se espalha menos se as pessoas ficarem com suas bocas fechadas. É chocante vê-las falando sem parar, como se não houvesse milhares de mortos, como se fosse possível festejar, como se a opinião delas (e a nossa) fosse importante agora.
Assim, neste momento de luto, eu gostaria de propor uma ação inspirada na arte: Desaparecer, vestir-se de total ausência, sumir. A própria aparição nos meios virtuais já me parece uma grande ausência, de fato, nós artistas do palco estamos agora em nenhum lugar. Talvez seja o caso de reconhecer isso e serenamente aceitar tal condição. O palco, vivendo sua vocação mais profunda de ser apenas chão, nos aguarda em silêncio.
Penso agora como é potente um palco vazio. Em breve voltaremos!