As veias sob a pele das que dançam

Opto por trazer aqui histórias de mulheres notáveis e uma delas, livremente ficcionada em respeito a própria. E assim, desde 2008, desenvolvo a pesquisa sobre a relação triádica entre: o feminino, as encantadas da Amazônia paraense e a videodança.

Em Belém, em 2008, num cafezinho sob a chuva da tarde para novos projetos, eu e Bela do Lago – amiga e artista performer -, conversávamos sobre as grandes mobilizadoras do movimento Feminista na dança. Havia em nós além da juventude, o desejo mobilizador de produzir algo que pudesse rodar presencialmente e pelo YouTube, a novidade daquele momento. Pensávamos nos legados de Isadora Duncan, Josephine Baker, Eros Volúsia e divagávamos sobre como Anna Pavlova teria curtido a boemia de Belém ao longo de sua temporada no Theatro da Paz, em 1918. Todavia, lançar o olhar para as mulheres da atualidade também nos daria argamassa para histórias de construção de liberdade e respeito a seus corpos e escolhemos este caminho.


Bela me apresentou para a história de uma pessoa de seu bairro, a Joia Laura, codinome da mulher que viveu muitos anos em situação de prostituição em meados dos anos 1950/60*, na época era considerada uma das mais bonitas da zona boêmia de Belém-PA. Ainda hoje comentam sobre o quanto era alterosa e impunha respeito sobre todo mundo, ela própria narrava sobre si desta maneira. Joia não sabia ao certo a sua idade ou de qual munícipio do interior do Pará foi retirada para trabalhar nos bordéis da capital.  Na época da conversa, disse que preferia viver em situação de rua por se sentir dona de seu próprio rumo. E diante disso, ela ainda é vista caminhando pelas ruas carregando sacolas com seus pertences e sem se curvar para o peso, seu nariz é sempre para o alto, caminha a passos de stop motion, de maneira coreografada, como numa passarela. A rua se torna uma quando ela passa, um respeito a exata pele que reveste a Joia Laura, certamente.

A videodança “Amor Veneris – um colar de brilhantes para uma pobre donzela”, estreou em concomitância à performance ao vivo da Bela do Lago, na semana do Fórum Social Mundial – 2009, no centro de Belém.

O acesso está aqui

A liberdade das mulheres se afixou como um princípio desde então. Em maio de 2020, ante aquela realidade do qual não desejamos retornar, estive ao lado do videomaker Vinicius Cardoso como ministrante de uma oficina de videodança online  para a Oficinas Culturais Oswald de Andrade, de São Paulo. Nesta, nos conectamos a 13 mulheres-artistas de várias partes do país. “Qual pele me reveste – conversas sobre videodança em tempos de isolamento social” gerou a videodança homônima “Qual pele me reveste?”, uma dramaturgia coletiva concebida a partir de conversas e reflexões com essas mulheres sobre seus aspectos pessoais e coletivos a partir do isolamento social.


Como provocação dramatúrgica foi proposto o conto “A volta ao lar: O retorno ao seu próprio self – Pele de foca, pele da alma”, de Clarisse Pinkola Estés, este que inspirou a dança de cada uma delas. A partir de suas diferentes trajetórias, faixas etárias elas compuseram seus cenários a partir da sugestão de direção de arte, figurinos, iluminação. Nos encontros virtuais, refletíamos sobre o fato de a arte online ser o como palco democrático para representatividade feminina, já que as mulheres foram as mais atingidas** (mais uma vez) diante daquela realidade sem precedentes, e pelos mais diversos motivos individuais e sociais, que apenas as suas peles-santuários puderam compreender.

Assista a dança dessas artistas incríveis aqui

As histórias que são construídas agora, dançam em respeito a todas as peles e veios que correm nas mulheres ao longo dos anos. Sigam e sigamos adiante.

Fichas Técnicas dos Trabalhos mencionados:

Qual Pele me Reveste?

Idealização e direção geral: Vanessa Hassegawa | Direção Audiovisual: Vinicius Cardoso | Edição e Finalização: Vinícius Cardoso | Trilha sonora original: Lucia Esteves | Co-direção e coreografias: Barbara Ivo (Olinda – PE), Carol Natal (Itaipava – RJ), Danieli Bertolami (São Paulo – SP), Duna Dias (Belo Horizonte-MG), Gabriela Leite (Florianópolis- SC), Irupé Sarmiento (São Paulo – SP), Karen Shimoda (São Paulo – SP), Liduína Lins (São Paulo – SP), Luci Savassa (São Paulo – SP), Maura Muller (São Paulo – SP), Marie Bueno (São José dos Campos -SP), Paula Davis (Belo Horizonte -MG), Patricia Pina Cruz (São Paulo – SP) | Correalização: Poiesis Gestão Cultural – Oficinas Culturais do Estado de São Paulo – Governo do Estado de São Paulo 

Amor Veneris – Um colar de brilhantes para uma pobre donzela

Videodança: Idealização: Bela do Lago e Vanessa Hassegawa | Direção de Vídeo: Sabrina Flechtman | Direção Coreográfica: Renata Daibes | Figurino: Pessoal do Faroeste Cia de Teatro | Fotografia: Robinson Machado | Intérprete Criadora: Vanessa Hassegawa | Edição de Vídeo: Marcelo Paradella | Coordenação: Arthur Leandro | Direção Artística e intérprete criadora: Bela do Lago | Trilha Sonora: Flora Purim com interferências de Bela do Lago | Figurino: Bela do Lago | Projeção de vídeo: Arthur Leandro | Realização: Casa de Caboco- Intervenções Artísticas no Fórum Social Mundial 2009. 

Notas: 

*Joia Laura dizia que era nos anos 40, mas por sua vitalidade da época da entrevista, cogitamos ser final dos anos 1950.

** Onu Mulheres – Resposta ao COVID-19: os impactos e implicações são diferentes para mulheres e homens: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf

*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Vanessa Hassegawa

Vanessa Hassegawa

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Pesquisadora de dança da Amazônia paraense, curadora, artista do campo da videodança|dança para a tela e relações públicas atuante. É mestranda em Artes da Cena pela Unicamp, onde investiga as relações das danças contemporâneas produzidas para as mídias “da palma da mão”. Estudou na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, é uma das idealizadoras da mostra Prosa, Vídeo e Dança, do qual acumula o acervo de cerca de 100 videodanças curadas, provenientes de vários países do mundo. É sócia do Coletivo Las Caboclas de videodança tendo produções que circularam por festivais de dança e vídeo nas cinco regiões do Brasil e países como Nova Zelândia, Espanha, Portugal, México, Argentina, Chile e Bolívia. Entre as realizações mais recentes está a codireção da videodança Qual pele me Reveste?, feita sob o aval da Oficinas Oswald de Andrade, de São Paulo, a obra produzida sem interação física com 13 artistas-mulheres de diversas regiões do país e também foi cocuradora da mostra Danças para Todas as Telas, para a Bienal Sesc de Dança 2021.