Crédito das Fotos: Xilogravura Isabella Carvalho
O quarto texto da série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança tem a contribuição de Ana Carolina Yamamoto refletindo sobre hipóteses de brasilidade desviantes, ou sobre brasilidade do corpo nipo-descendente a partir de uma apreciação do solo Tudo de Novo de Beatriz Sano – obra criada para o projeto Solos Brasileiros, a convite da Oficina Cultural Oswald de Andrade.
texto de Ana Carolina Yamamoto[1]
O exercício de retomar através das palavras a minha experiência enquanto espectadora é relativamente novo para mim. Como mediadora cultural e arte-educadora, sempre estabeleci com o outro uma conversa: “o que você vê aqui? O que te toca? Há algo nessa obra que te inspira ao movimento?”. A tentativa, nesses casos, era sempre fugir dos desejos mais literais de busca por uma representação ou por qualquer gesto que tentasse conter e encerrar a obra de arte, isto é: pensá-la enquanto uma semente com múltiplos potenciais de germinação (ou abrir mão dela, mesmo que temporariamente, e seguir a vida em paz).
Levo essas perguntas comigo para todos os lugares para onde vou (costumeiramente, junto com muitas outras) e me sinto feliz quando vejo que me esqueço delas porque estou sendo radical ou sutilmente atravessada, tocada e mobilizada por aquilo que vejo. Daí até a tarefa de estruturação e compartilhamento da experiência vivida, são outros quinhentos.
A escolha de tentar escrever sobre ‘Tudo de Novo’ quase não foi uma escolha, mas um impulso que surgiu com uma certa urgência. Uma necessidade de tentar mapear os cruzamentos de tudo aquilo que o solo mobilizou em mim, desde uma empatia profunda provocada pelo movimento até as questões (históricas, sociais, pessoais, políticas) relativas à própria discussão sugerida pela encomenda do trabalho. A celebração dos cem anos da Semana de Arte Moderna e a proposta de criação de “uma dança brasileira, um solo para Villa-Lobos” traz para o debate a conjuntura histórica que cercava o modernismo paulistano, o desejo de construção de um imaginário de Brasil. Discussão e contextos que se viam reativados na construção coreográfica do solo, encarnados no corpo da performer, Bia Sano, e que, inevitavelmente, se reativaram no meu próprio corpo (também nipo-descendente[1]) enquanto assistia o trabalho e, agora, enquanto lembro do que assisti.
Retomar e tentar dividir a minha experiência espectatorial[2] foi também, dentre outras coisas, um gesto de memória. Para fazê-lo, evoquei a figura do peixe emblematicamente estampado em azul e descrito em letras garrafais na camiseta usada por Beatriz, como um pedido de licença para nadar por caminhos não-lineares e aquosos da lembrança daquilo que vivi assistindo ‘Tudo de novo’ numa sexta feira de noite na Oficina Cultural Oswald de Andrade, mas também por entre caminhos da minha história pessoal, que fui desenrolando na medida do exercício da escrita, que acabou pedindo por uma experimentação formal (comedida) também no texto.
Flutuo por entre os campos que ligam corpo, história, escrita e movimento.
- Sobre o peixe: duas lembranças
Pescar foi uma coisa que só fiz uma (ou duas?) vezes com meu avô Hideo, num pesqueiro lá em Araçatuba, interior do estado de São Paulo. Apesar disso, só consigo lembrar dele comendo torresmo e melancia, ou tomando miojo no café da manhã.
Minha avó Sandra, do outro lado da família, não me parece ter pescado algum dia, muito menos enfiado as mãos numa lama suja de mangue. Tenho, contudo, a nítida memória de comer moqueca com camarões frescos e casquinhas de siri feitas por ela num almoço de domingo.
No dia em que escutamos no grupo de estudos a fala de Beatriz sobre o processo de criação do solo ‘Tudo de Novo’ e assistimos um pequeno trecho de ensaio em vídeo, fiz uma anotação a partir de uma das frases pré-gravadas pela própria artista (que posteriormente viraram parte fala entoada durante a apresentação):
“brasileira
pelas bordas” → o que significa uma brasilidade nipodescendente?
Uma pergunta válida, posto que a criação surge em resposta a uma encomenda que tem como título “Danças Brasileiras: Solos para Villa-Lobos”. Quais são (ou quais podem ser) as danças brasileiras? Quem são os sujeitos que podem assumir esta autoria? Olhando em retrospecto, acho que a minha questão poderia ser melhor colocada de outra forma:
Como é possível afirmar uma dança brasileira desde uma perspectiva nipodescendente, pensando o corpo amarelo como outrificado, estrangeirizado?
Meu avô materno (aquele citado na lembrança) era nissei, filho de imigrantes japoneses nascido no Brasil. Seus pais vieram para cá entre 1926 e 1927, quase vinte anos depois do primeiro navio vindo do Japão, o Kasato Maru, atracar no Porto de Santos no ano de 1908 e quatro anos depois do empreendimento calculadamente ousado que foi a Semana de 22.
Meu avô se encaixava em uma das descrições do que entendemos como homem amarelo: de olhos puxados, nariz largo, cabelos lisos e escuros de fio grosso. Meu avô, muito embora sempre chamado de ‘japonês’ e assim reconhecido por todos que lhe outrificavam, era um homem brasileiro. Voltarei a este ponto.
Cena 1:
Eu entro na Sala 07 da Oficina Cultural Oswald de Andrade numa sexta feira à noite. Quatro horas atrás eu estivera ensaiando naquele mesmo lugar, minha mochila e sapatos numa cadeira na arquibancada, luz de serviço acesa. Quatro horas depois, eu entro nesse espaço e tudo está diferente. As luzes apagadas, platéia suavemente iluminada, janelas abertas. Em um dos vidros, no canto direito, o reflexo de uma luz branca que poderia ter sido precisamente calculada, mas me parece o certeiro abraço de um acaso feliz. Essa luz, por sua vez, projeta uma sombra na parede oposta. Está construída a noite na semi-arena irregular daquela sala. A luz de um poste, a luz da lua.
Beatriz Sano movimenta o ar e contorna a sala numa corrida. Sua sombra vai junto, cresce e diminui, muito embora desapareça um pouco antes do corpo que a projeta. A luz muda, aos poucos, e entendemos que há uma pequena partitura que se repete. Há também a Bachiana nº5 criando um campo sonoro, a voz feminina canta a ária Cantilena. Não me lembro com precisão. Na minha memória, a voz tem tempo e chance de dominar a sala, ganhando um momento sozinha enquanto a performer some por um instante – um vazio completamente preenchido, como dois pulmões cheios de ar.
Escuto a ária de novo sozinha em casa e retomo as minhas anotações.[3].Concordo com a fala da Bia: essa ópera “é realmente uma coisa grandiosa” – e é reconhecidamente uma obra de Villa-Lobos. A Bachiana nos toca na medida de sua distância[], ela nos diz de algo que não podemos tocar, afirma o tempo que inevitavelmente nos separa de sua origem, mas (re)inscreve seu testemunho. A mim, me sensibiliza porque sinto: o espaço se expande com o som, está ainda mais aberto para as coisas que estão a acontecer por ali.
Estou sentada na primeira (ou na segunda?) fileira e me emociono porque vejo um corpo de tamanho próximo ao meu rasgar o espaço e atravessar os ciclos: dias, noites, meses, anos, um século ou dois.
O trajeto inicial da dança é circular e faz o tempo espiralar diante dos nossos olhos. O corpo constrói e atravessa esses percursos dançando. Como no Banho de Marta Soares, a luz e a repetição das células de movimento nos sugerem essa passagem do tempo sem representação. Há um fluxo de movimento contínuo e em progressão, tem a recorrência de giros sobre o próprio eixo e numa espécie de translação (um giro que circunda um espaço). Se na obra de Soares o movimento lento do corpo fragilizado e enrugado na banheira nos emudece e nos recolhe, aqui há uma vitalidade que nos permite cruzar mais de cem anos, com fome e desejo devorador. Dançar é um exercício da memória, é uma chance de curvar e rasgar o tempo.
Uma das questões que mais me instigou ao longo do ciclo de estudos sobre os arredores da Semana de 22 foi: “o quanto efetivamente mudamos desde então?”, que também pode ser pensada como: “temos alguma chance de ser alguma coisa, senão herdeiros dos modos de ser e fazer antropofágicos destes modernistas?”. O título ‘Tudo de novo’ faz alusão a uma fala de Mário de Andrade que, anos depois do Manifesto Antropófago, afirma que precisaremos ‘comer tudo de novo’. O nome também sugere o poema de Leminski que diz que: ‘o novo não me choca mais/nada de novo sob o Sol’. Fazemos tudo de novo e não há qualquer novidade nisso.
Acontece que, na repetição – seja por escolha ou por uma sina – há sempre a chance de uma rachadura, ou ainda, a chance de re-escritura. Quando vivemos uma mesma coisa de forma diferente, algo também muda. Os significados da Bachiana nº5, inclusive sua magnitude, são inscritos agora de outra maneira.
- Cena 2:
Ela traz um tripé com microfone para a boca da cena. Canto direito do palco:
– fome
[dança]
– fome
[repete o gesto]
– come
[braços em pêndulo]
– come
[seguem balançando]
– chama
– chama
– brasileira
[gesto para cima]
– brasileira
[gesto para cima]
Este enunciado – palavra entoada que simultaneamente afirma o que é e faz ser – a meu ver, faz uma amarração crucial no trabalho. A palavra “brasileira” retoma o tema-chave da encomenda, mas, para mim, também enuncia a condição – por vezes não-óbvia – de brasilidade da própria performer.
Quando penso nas cronologias da imigração japonesa no Brasil e da consolidação do projeto modernista sudestino, consigo ver de que maneira essa crescente e expressiva população recém-chegada teve suas histórias e presenças deixadas de lado nas narrativas dos poetas, escritores e pintores que diziam re-descobrir o Brasil. Afinal, a ideia era reafirmar as nossas origens – também fortemente marcadas por uma diáspora, esta forçada, imensamente mais violenta – e os nikkei (imigrantes e seus descendentes), de certa forma, não faziam parte dela (isso sem falar na imensa rejeição e repressão que sofreram em solo brasileiro durante todo o período da Primeira Guerra Mundial).
Muito embora as condições das comunidades japonesas imigrantes e de seus descendentes tenham se transformado e estas tenham crescido em tamanho e influência, o mito das três raças perpetuados pela produção artística e literária desde cem anos atrás (a ideia central de que “o indígena, o europeu e os negros do continente africano deram origem à população brasileira”) permaneceu como a nossa verdadeira e contínua história de origem.
Sinto, enquanto yonsei (descendente de quarta geração) sem fenótipos, que ainda não soubemos escrever as histórias dessa mestiçagem nipo-brasileira e reconhecer que seus descendentes e suas heranças tornaram-se também parte de uma história do Brasil – não como um povo perpetuamente estrangeiro, mas também típico deste país. Se aquilo que nomeamos de forma unificada e generalizante como “cultura japonesa”[5] hoje está presente em cotidianos brasileiros, os elementos de uma suposta “cultura brasileira” também estão encarnados nos nisseis, sanseis e yonseis que aqui vivem.
- Finalmente
Como é possível afirmar uma dança brasileira desde uma perspectiva nipo-descendente? Não há resposta única, mas sinto que Beatriz Sano certamente o faz, porque sua dança acontece neste contexto, porque afirma em palavra esta condição e, sobretudo, porque seu corpo atravessa e espirala os cem anos da escrita desta versão da nossa história.
Veja mais sobre a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança:
Texto 1 – https://portalmud.com.br/portal/ler/danca-modernismos-brasileiros-e-arredores
Texto 2 – https://portalmud.com.br/portal/ler/do-eu-ao-nos
Texto 3 – https://portalmud.com.br/portal/ler/bocaaaaa-um-solo-de-allyson-amaral
Texto 5 – https://portalmud.com.br/portal/ler/tudo-de-novo
Texto 6 – https://portalmud.com.br/portal/ler/antropofagia
[1] Ana Carolina Yamamoto, 24, é artista da dança, bacharel formada pela Unicamp e arte-educadora, concluinte da licenciatura na mesma instituição. Atualmente realiza pesquisa de iniciação científica que investiga relações coreográficas em obras de instalação e políticas de espectação no espaço museal. Acompanha como observadora e criança residente o grupo Lagartixa na Janela e trabalha como intérprete e performer em projetos independentes. Você pode reclamar deste texto com ela pelo instagram @bergamoteira.
[1] Também pisciano, também com menos de 1.60 centímetros de altura – mas essas duas informações são menos relevantes.
[2] Aqui pensamos numa “espectação” com S, que é pensada como uma prática que gira ao redor das experiências do espectador, nos deslocando da imagem excessivamente passiva do “expectador” como aquele que “somente espera”, somente recebe – afinal, a experiência da obra é uma experiência de encontro com o outro e consigo mesmo e me parece haver um mundo inteiro nisso. Me baseio aqui em um artigo da Alessandra Montagner: MONTAGNER, Alessandra. A espectação enquanto prática em Shoot the Sissy. Sala Preta, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 192-202, 2017.
[3] E também a própria transcrição do encontro, que fui quem fiz.
[4] Salve, Benjamin.
[5] Edward Said, corre aqui!