Antropofagia

Crédito das Fotos: José Agrippino de Paula

Fechando um conjunto de textos que refletem sobre obras criadas para o contexto do projeto Solos Brasileiros – iniciativa da Oficina Cultural Oswald de Andrade que celebrou o centenário da Semana de 1922 – Paula Petreca traz uma reflexão sobre um tema que atravessa essas obras comentadas e que também tem um lugar de reflexão na dança contemporânea brasileira que são as idéias da Antropofagia.

A anedota que envolve Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Raul Bopp em torno na tela o Abaporu nos conta que maravilhados diante da pintura da artista, os dois intelectuais foram folhear um dicionário de tupi-guarani para batizar a obra com um nome representativo. A palavra escolhida por Bopp, cujo significado é “o antropófago – aquele que come gente”, inspirou o fértil devaneio intelectual de Oswald que se documenta em seu Manifesto Antropofágico (1928) e em toda movimentação ao redor da Revista de Antropofagia (1928-1929), o que conjurou entre uma classe de pensadores de maneira inaugural uma valorização da cultura brasileira popular e de traços dessa cultura lidos pelas elites e estrangeiros como  menores e/ou marginais, alçando-os a um lugar de protagonismo, onde o Brasil olhava a si mesmo apesar das influências estrangeiras (e não através delas, e tão pouco as negando).

Embora na contemporaneidade o conceito de antropofagia se apresente largamente em diferentes âmbitos da arte brasileira, é interessante percorrer sua historiografia e observar que naqueles finais de década de 1920, quando Oswald de Andrade e todo um grupo de intelectuais com Raul Bopp, Mário de Andrade e Alcântara Machado passam a convocar idéias de devoração e trânsito no tratamento de nossos traços multiculturais, essa idéia não foi aceita unanimemente. E dentro do Estado de São Paulo acirrou o campo de disputa por projetos estéticos modernos, criando um ponto de oposição ao ufanismo conservador dos Verde-Amarelos, grupo de Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio Salgado (este último, fundador da Ação Integralista Brasileira – partido que flertava com o fascismo italiano). Esse grupo propunha uma visão de modernismo paulista evocando um retorno às coisas simples do passado, a glorificação dos bandeirantes e a profunda rejeição a informações de cultura estrangeira.

O que acontece nas décadas de 1930 e 1940 durante o período Vargas é que a fundação de uma ideia de Brasilidade, tenta conciliar os projetos modernistas em disputa, não apenas misturando valores a princípio contrastantes como os expressos por esses grupos de São Paulo, mas trazendo também de expressões de movimentos regionalistas, elementos para construir um pensamento de identidade nacional universalista, que minimizasse as diferenças conceituais, territoriais, culturais e transmitisse uma brasilidade consensual apaziguada de suas tensões latentes.

Essa conjuntura atribulada, sucedida pelo não menos conturbado contexto da quarta república que culmina com o golpe militar de 1964, opera num certo adormecimento de interesse pelo conceito de antropofagia, que só retornará ao grande debate público em meio aos movimentos de contracultura que irrompem no país ao longo do período da ditadura militar, inspirando respostas inventivas e arrojadas de artistas que se embatiam com o regime.

Essa recuperação dos ideias da antropofagia pelos neoconcretos, pelos tropicalistas, pelo cinema novo, pela arte contemporânea brasileira, em paralelo ao desenvolvimento da crítica cultural no país que se estrutura a partir da leitura dos pensadores modernistas, talvez contribua para a interpretação da importância que o conceito antropofágico alcança na arte brasileira do presente e nos incita a perguntar que tipo de relações a dança brasileira constrói com esse pensamento?

Embora a Antropofagia na dança não tenha formulado nenhum movimento de expressa filiação conceitual como por exemplo o Tropicalismo o fez na música, o Cinema Novo o fez no cinema, alguns artistas de forma pontual ou persistente durante suas carreiras, se aproximaram de idéias antropofágicas para construir suas poéticas. Talvez entre os bailarinos quem mais tenha tomado para si valores antropofágicos tenha sido Ismael Ivo (1955-2021). Tanto em relatos escritos sobre si, como na própria narrativa biográfica, Ismael ressaltava  na sua formação e trajetória inicial a importância da confluência de saberes, onde o encontro com técnicas como o ballet e a dança moderna, a consciência corporal, e a vivência dele na rua, no samba, no candomblé iam compor o corpo desse artista atravessado para criar a sua linguagem cênica. Nas suas entrevistas mais recentes, ele vai se auto nominar Macunaíma, filho da antropofagia,  se filiando ao movimento antropofágico, e marcando também um dado social que orienta sua forma de elaborar a antropofagia: a fome. Ismael deixava explícito que a realidade onde ele estava inserido  tinha muita fome – fome de cultura, fome de informação. E que foi essa fome que o moveu para buscar o mundo, tanto numa perspectiva técnica, quanto na perspectiva da própria circulação por países, projetos, contextos…  O atravessamento de referências no trabalho do Ismael, era de certa maneira, uma apropriação antropofágica para a linguagem do corpo.

Outra referência para o pensamento antropofágico na dança foi Maria Esther Stockler (1939-2006). Para além de ter coreografado “O Rei da Vela” na montagem de 1967 do Teatro Oficina (quando se recuperou num  debate público o interesse pela obra do Oswald), Maria Esther Stockler teve uma formação já bastante contemporânea, atravessada de diversas técnicas corporais. Só no Brasil ela entra em contato com técnicas que vão do Ballet ao Yoga passando por Laban e Dona Maria Duschenes ao longo do seu caminho. Depois ela viaja aos Estados Unidos e tem uma formação nas técnicas modernas americanas, cruzando artistas de uma chave mais experimental como Meredith Monk e Allan Wayne. No retorno ao Brasil ela começa a trabalhar a princípio mais relacionada ao teatro, até ela encontrar Agrippino de Paula, que foi um artista, cineasta, poeta, fundamental para o Tropicalismo. Maria Esther e Agrippino tiveram um encontro amoroso, e essa paixão moveu uma série de criações artísticas. Poderíamos falar de vários trabalhos que emergem desse encontro “Hitler do Terceiro Mundo”, “O Rito do Amor Selvagem’ e a série de filmes que foram feitos pelo Agrippino em viagens, que mostram muito da dança da Maria Esther. Mas se detalharmos nossa observação na dança que Maria Esther produziu, e pensando que seu corpo era esse corpo atravessado de muitas técnicas e linguagens, vamos ver nesses filmes o momento em que ela buscava um caminho autoral com sua dança, através de experimentações. Uma linguagem tropicalista, e mesmo antropofágica dialoga com o trabalho dessa bailarina, na medida em que ela não fixa nenhum território de saberes e técnicas nas danças. Ela nos oferece confluência. Essa forma da Maria Esther dançar evoca muito um pensamento moderno de dança, interessado pelo movimento livre, movimento natural, pela expressão. A discussão que ela fez em sua dança não deixa nenhuma dívida para as discussões da dança moderna americana ou europeia, a questão é que ela foi esquecida pela dança brasileira.

Na contemporaneidade, a discussão antropofágica aparece como interesse ou citação em trabalhos de artistas tão variados como Marcelo Evelin (“Matadouro”) ou Elisabeth Finger (“Amarelo”), Lia Rodrigues  ou Mari Paula (“Retropica”), e mesmo estrangeiros como Tamara Cubas (“Trilogia Antropofagica”) ou Fabrice Ramalingom (“Nós, tupi or not tupi”), demonstrando a prevalência do conceito mesmo em discussões mais recentes. Os quatro últimos textos dessa série, refletiram sobre criações de Eliana de Santana, Allyson Amaral e Bia Sano, que também dialogam com ideias antropofágicas, em elaborações bastante críticas por esses artistas. Nas próximas semanas, os textos dessa série se debruçarão sobre outra discussão de relevância dentro do modernismo brasileiro que são os debates regionalistas. Não percam!

Veja mais sobre a série de reflexões sobre os movimentos do modernismo brasileiro e suas relações com a dança:

Texto 1 – https://portalmud.com.br/portal/ler/danca-modernismos-brasileiros-e-arredores

Texto 2 – https://portalmud.com.br/portal/ler/do-eu-ao-nos

Texto 3 – https://portalmud.com.br/portal/ler/bocaaaaa-um-solo-de-allyson-amaral

Texto 4 – https://portalmud.com.br/portal/ler/apreciacao-ou-digressao-sobre-o-solo-tudo-de-novo

Texto 5 – https://portalmud.com.br/portal/ler/tudo-de-novo

Paula Petreca

Paula Petreca

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Sou uma artista do movimento e professora de dança e yoga. Estudo o corpo e a dança de diversas formas desde os anos 1990, mas destaco minhas passagens pela Escola Livre de Dança, pelo estúdio Luis Louis de Mímica e de Teatro Físico, pelo estúdio Nave e pelo mestrado em Comunicação e Semiótica da PUCSP como os locais mais importantes para minha formação no Brasil.  Divisor de águas em meu percurso foi o período de quatro anos em que vivi no c.e.m – centro em movimento de Portugal, onde pude ressignificar meus entendimentos de dança a partir dos estudos com Sofia Neuparth, Peter Michael Dietz, Margarida Agostinho, Ainhoa Vidal, Eva Karczag, Lisa Nelson e Steve Paxton, em paralelo ao atravessamento de experiências comprometidas de atuação em dança nas ruas de Lisboa. Como coreógrafa, desde 2007 elaboro peças autorais, e desde 2010 idealizo e dirijo o Projeto Co – plataforma de criação em dança para espaços vários. Em oito anos de trajetória criamos com o Projeto Co dez peças para espaços públicos das cidades de Lisboa, São Paulo e dos sete municípios do ABC Paulista. No campo pedagógico, elaborei pensamentos na coordenação do Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo, na Escola Livre de Dança de Santo André, na Escola de Dança de São Paulo, e no presente momento no Centro de Referência da Dança de SP. Atualmente me aprofundo em práticas de meditação ativa e na criação de outras formas de conhecer e existir através da arte e do convívio potente e destemido.