Algumas perspectivas sobre corpos privados de liberdade

No início deste ano, 2022, recebi um presente muito aguardado, ser professora da disciplina artes na Escola Estadual Estevão Pinto, pertencente ao complexo penitenciário feminino Estevão Pinto, situado na região centro sul da cidade de Belo Horizonte – MG. No ano de 2018[1] tive a experiência de trabalhar em outra instituição prisional, e estava querendo voltar para esta área. Neste texto lançarei algumas perguntas que estou me debruçando e que despertam meu interesse durante as aulas que ministro na instituição que atuo.

Algumas coisas me chamam a atenção quando estou na penitenciaria, ao adentrar o que em primeira instância evoca a atenção é o espaço arquitetônico. Estamos cercados pela a arquitetura das cidades, de nossas casas, trabalhos, escolas, mas ao decorrer dos nossos trânsitos não voltamos o olhar atento, analítico, afetivo para essas construções. Dentro de uma penitenciária a organização do espaço apresenta indícios de experiências e vivências que ficam gravadas nos corpos que ali habitam ou estão naquele local, defendo essa ideia de que o cárcere de alguma maneira imprime sua marca nos corpos privados de liberdade, pois o que estabelece nossa presentificação com o mundo é o corpo, que se efetiva através das movimentações e gestos. Com o passar dos anos vivemos e consequentemente carnalizamos experiências, vivências, afetos que tem como base experiências sociais, materiais e culturais, é a experiência do corpo com o mundo que efetiva o ser quem somos (ALMEIDA, 2011). Se todo o espaço interfere na relação do corpo com o mundo com o cárcere não seria diferente. A existência atípica de grades espessas nas janelas, vitrais, portões maciços que travam as aberturas da construção com seu entorno. Estruturas diretas, sem círculos, lineares, retas que não estão ali por acaso, elas servem para guardar o que habita lá dentro.

Nomeio como rituais o que um corpo passa para entrar ou estar dentro de uma instituição prisional, como o ato de passar por revistas, mostrar o corpo, de ter seus pertences pessoais retidos, os protocolos de vestimenta que visam à identificação dos corpos que ali se fazem presentes. Cada pessoa que exerce uma função na penitenciária como os agentes, professores, as presas e etc. seguem um padrão de vestimenta. A pesquisadora em dança Marcia Strazzacappa (2003) aponta questões positivas e negativas do uniforme no ambiente escolar. No sistema prisional entendo o uso do uniforme como uma medida de identificação. Em concordância com Strazzacappa (2003), que aponta o uso do uniforme como mais benéfico do que desvantajoso no ambiente escolar, defendo também que no presídio seu uso oferece mais vantagens do que desvantagens, mas não é esse o ponto de discussão e sim de como tudo que perfaz o estar privada de liberdade interfere no corpo e suas relações presentes e futuras. Os uniformes promovem a identificação através da uniformização, mas será que efetivamente se consegue uniformizar o corpo? Para Strazzacappa (2003, p. 79), uma das desvantagens é que “O aluno deixa de ser indivíduo para ser grupo.” o uso do uniforme as torna pertencentes a um grupo, mas será que ele é capaz de apagar seus traços, histórias e memórias? Em cada presa vejo suas histórias marcadas em seus corpos, em suas tatuagens que algumas já nos revelam suas crenças, músicas preferidas, seus amores, frases e filosofias que acreditam. Em seus andares, gestos e posturas, é possível identificar a mais tímida, a destemida, a líder, a tranquila. O corpo fala, é o que sempre ouvimos, lemos! E realmente, ele é capaz de narrar toda a trajetória vivida de uma pessoa.

Como a privação de liberdade se reflete em um corpo que dança? Alguns profissionais da dança como coreógrafos, preparadores corporais, professores quando aplicam seus processos criativos trazem elementos da natureza, da vida cotidiana e assim por diante, questões rotineiras que passam a serem banais em nosso dia a dia, como cheiros, aromas, sabores, toques. E em corpos privados de liberdade? Como se dão esses processos com esses mesmos estímulos, já que a realidade presente da população carcerária é a da cela para o pátio, uma pequena janela que na maioria das vezes direciona o olhar para muros altos, e assim o dia todo, todos os dias. Percebo que esses corpos são repletos de potência e singularidade, não pretendo apresentar uma visão romântica, porque a cadeia não é! Pergunte a uma pessoa em cárcere ou que já não se encontra mais nesta situação se ela quer retornar ou ficar lá, aposto que a resposta é não, o que acredito é que mesmo reclusas esses corpos tem sua potência e singularidade.

Apoiada nas ideias da professora e pesquisadora Marcia Almeida (2011) de que tudo que nos cerca influência, então como o cárcere influência no corpo que dança? O corpo que se insere no espaço prisional guarda em suas tensões as memórias ali vividas, percebo que suas musculaturas mesmo sem tônus, com estruturas musculares frágeis no sentido de não serem condicionadas, pois elas não têm trabalho de corpo lá dentro, mas ao mesmo tempo os gestos e movimentos emitem certa tensão. Os gestos são secos e fechados, dificilmente são de abertura. Em uma linguagem da dança, conforme os Quatro Fatores do Movimento de Rudolf Laban (1978)[2], o espaço é sempre direto, o olhar pode ser multifocal, mas os movimentos e gestos são lineares. A fluência controlada, respiração entrecortada. Um dia uma das estudantes estava se queixando de dores nas costas, passei um exercício do sistema Laban/Bartenieff, a guiei para uma respiração completa, que enchesse o corpo. Ela relatou que doeu, porque a respiração abriu seu peito a partir da expansão do pulmão e ela não tem o costume de respirar daquela maneira. Suas inspirações e expirações são rápidas, parece que estão sempre em estado de atenção, mesmo quando se mostram calmas. O peso passivo e pesado (FERNANDES, 2006) o corpo está sempre entregue a gravidade. Cada pessoa emite um som ao andar, elas se arrastam, mesmo andando rápido, os pés rentes ao chão, o centro gravitacional de seus corpos pende para o chão até nas mais imponentes, é um corpo que pesa.  O tempo súbito, os seus corpos mesmo pesados e com peso passivo presentificam a pressa, o corpo somatiza o querer delas que é o passar rápido do tempo, que reflete em seu ritmo corporal.  Então mesmo com o corpo passivo em relação ao tempo seus ritmos são rápidos. Se juntarmos três Fatores: espaço direto, peso passivo e tempo súbito temos a ação de pressionar (LABAN, 1978), que é a ação dominante que percebo claro que as outras ações do movimento também aparecem, mas em sua maioria é notável que suas tensões corporais emitem a ação da pressão, que se reflete na relação com o espaço, com as outras e objetos.  

Estas ainda são análises preliminares, mas é notável que o cárcere imprime determinadas qualidades de movimentos nos corpos que habitam ou por ali passaram. O que me interessa a priori é ativar o corpo dessas mulheres privadas de liberdade para um processo criativo em artes corporais para que através do corpo elas encontrem outras ressignificações para essa cicatriz que o cárcere, a privação de liberdade provoca.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Marcia. A Plasticidade Corporal e a Dança Contemporânea. In: CALDEIRA, Solange Pimentel (organizadora). III Seminário e Mostra Nacional de Dança Teatro. Coleção Caminhos da Dança teatro no Brasil. Viçosa: Tribuna Editora, 2011.

FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. 2ª edição – São Paulo: Annablume, 2006.

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. Organizado por Lisa Ullmann. Tradução: Anna Maria Barbosa de Vecchi; Maria Silva Mourão Netto. São Paulo: Summus, 1978.

STRAZZACAPPA, Márcia. Dança na educação: discutindo questões básicas e polêmicas. Pensar a Prática, Goiânia, v. 6, p. 73–86, 2006. DOI: 10.5216/rpp.v6i0.55. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/55. Acesso em: 10 maio. 2022.


*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.


[1] Atuei como ministrante de oficinas de Performance na APAC (Associação de Proteção e Assistência a Condenados) da cidade de Viçosa – MG. O projeto Performance e Direitos Humanos desenvolveu em 2018 propostas de performance com pessoas em situação de cárcere. A pesquisa é coordenada pela professora Dr.ª Christina Fornaciari, docente nos cursos de licenciatura e bacharelado em Dança da UFV.

[2] Os Quatro Fatores do Movimento de Rudolf Laban e suas qualidades são: Espaço (direto e flexível); Fluência (controlada e livre); Peso (firme e suave); Tempo (sustentado e súbito) (LABAN, 1978).

Nailanita Prette

Nailanita Prette

Ver Perfil

Mestre em Artes – linha de pesquisa Artes da Cena, pela UFMG; licenciada e bacharel em Dança pela UFV; técnica em Dança pela ETAM Santa Cecília. Artista das Artes do Corpo com ênfase em Dança Contemporânea e Performance, com trabalhos autorais e com artistas parceiros. Professora de Dança e Artes na rede pública de ensino e no curso técnico de Artes Visuais, ambos da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Pesquisadora em Dança e Teatro Físico com interesse nas temáticas: Analise do Movimento, Técnicas Corporais, Poética do Corpo, Processo Criativo em Dança, Improvisação em Dança e Modos de Mover Contemporâneos. Se interessa na teorização da Dança a partir da prática, do corpo em movimento, uma das vertentes de trabalho que vem se arriscando é a Critica em Dança.