Crédito das Fotos: Lucas Emanuel
Na Avenida São João aguardando um Uber, uma mulher ao meu lado aguardava o seu. Nessa altura, eu era voluntária no Instituto de Reintegração do Refugiado, onde dava aulas de português. Tento iniciar uma conversa elogiando o fato de filhos de refugiados terem conquistado o direito à creche. A mulher em questão pensava diferente: “as crianças refugiadas vão tirar o lugar de crianças brasileiras”. Saindo de um espetáculo, recentemente, encontro uma artista inconformada com a falta de oportunidades para seus projetos. “Agora os editais só contemplam negros, indígenas, periféricos e pessoas trans…”.
O outro é aquele que vem para tomar o “meu” lugar. Por que não rompemos com essa lógica e passamos a exigir que haja creches para todas as crianças e mais verba para os editais e programações culturais?
Com muito atraso, editais privados e públicos, festivais, centros e instituições culturais, abriram espaço para as produções dos chamados artistas invisibilizados sem, para tanto, aumentar os recursos financeiros investidos. As instituições se satisfazem com suas políticas afirmativas mesmo que para isso cometam exclusões que, aliás, se julgam justificadas.
Colonizadores e imperialistas, como se sabe, sempre se valeram da estratégia de colocar grupos ou nações umas contra as outras, enfraquecendo ambos os lados para, por fim, sujeitá-los a aceitar o preço baixo da necessidade. Vivenciamos isso sem nos darmos conta de que estamos fazendo o jogo dos opressores e vemos, então, homossexuais femininas contra homossexuais masculinos, brancos contra negros, ribeirinhos sem terras contra indígenas sem reservas, nativos contra refugiados, pessoas não-binárias contra cis e vice-versa e etcetera. Dividir para dominar.
As injustiças históricas têm muita urgência de serem assistidas. Estamos devendo muitíssimo a todos que foram e são alijados da vida institucional do país. Mas essa dívida é impagável, não há como precificar vidas. Mais urgente, complexo e fundamental é abrir rachaduras na infraestrutura na qual essa sociedade, sociabilidade e subjetividade são erigidas.
Como responder a essas urgências sem reiterar a fragmentação e o conflito entre nós? Como responder sem jogar o jogo da inclusão-exclusão (substituição) que espelha o princípio que estrutura essa sociedade? Como não recair no que fez tudo chegar onde chegamos? Como não reproduzir a lógica – até mesmo quando a estamos criticando – que fez esse mundo ser o que é? Como pensar a subalternidade fora da lógica da subalternidade?
Sei de uma artista excepcional que se apresentou num festival e por ser uma mulher trans foi atacada na rua, um dia antes da apresentação. A organização do festival lavou as mãos; na verdade, mais grave do que isso, agiu de forma a que ela silenciasse prometendo ações que não realizou. Isso aprofundou o corte aberto pelo capacete de motoqueiro usado para machucá-la. Não é possível dar visibilidade a uma artista trans e silenciar a brutalidade vivida no seu corpo – porque são indissociáveis.
Muitas instituições e curadores procuram artistas desobedientes que, contudo, obedeçam o limite do risco à imagem institucional. Isso faz ver o quanto estão respondendo às demandas de políticas da diversidade – caso contrário, também estariam arriscando sua imagem – sem querer passar pelas ruínas da edificação que nos construiu.
Trabalhar com a diversidade como um valor cultural, educacional, social, político e artístico requer recursos materiais e humanos. As instituições deveriam alocar mais verbas para suas políticas afirmativas. Do contrário, o custo das inclusões recai sobre os próprios artistas que veem seus mercado de trabalho e a sua arte sucateados.
A cultura, a educação, a saúde, a economia inclusivas precisam de mais verbas para suas políticas afirmativas ou apenas trocarão os papéis, por um tempo, entre os que serão os incluídos e os que serão os excluídos. Dicotomia da alternância que só inverte a ordem de valores.
Não é segmentando que se inclui. Há diferenças e são importantes e constitutivas dos grupos sociais. Naturalmente, a responsabilidade não é somente das instituições. Precisamos nos perguntar o que esse tempo político-histórico pede de nós.
Se não são todos os privilegiados que concordam com a política de destruição e supressão de infinitas vidas humanas e não humanas; se não são todos que compactuam com as políticas colonizadoras e com as forças de coerção e cooptação do poder, nós que nos sentimos co-responsáveis porque vivemos com privilégios devemos usar as armas facultadas por esses privilégios a favor da vida e para isso é preciso olhar a imagem em negativo. Conscientizarmo-nos da dinâmica existencial dessa sociedade inevitavelmente nos levará à própria subjetividade.
Um dos maiores saltos da nossa história recente acontece com a entrada dos movimentos sociais, culturais, étnicos e de gênero no campo do direito democrático. Indígenas, negras, negros e mais mulheres ocupam cargos estratégicos no governo federal. Choramos de emoção e comemoramos com otimismo e alegria.
Sabemos, contudo, que a atualização da apropriação do trabalho pelo capitalismo neo liberal assume novas formas e fórmulas para continuar existindo. Ainda estamos rastelando a terra, mas o buraco é bem mais embaixo. (1)
O que esse tempo pede de nós é pensar, estudar, suspeitar, ouvir, debater, criar de onde quer que estejamos, incisões na mecânica do poder dominante hegemônico. Gestos que criem novas ativações e novas composições políticas, sociais, coletivas e artísticas.
A primeira versão desse texto foi publicada, em março, pela excelente revista Revestrés, com o título “Dividir para dominar”. Dois meses depois o reli para ser publicado no Portal MUD e percebi o quanto estava criticando o sistema na lógica que o próprio sistema ensina. Nessa segunda versão me empenho no difícil – posto que estrutural – e libertador exercício de pensar fora da dualidade que forma nosso pensamento e nossa prática para perceber a correspondência entre as coisas.
Na busca de imaginar outros nortes para sentir o mundo e a vida, reli notas de uma aula com a professora-filósofa Thereza Rocha e li trechos do livro Não vão nos matar agora da pensadora e artista excepcional Jota Mombaça. Ambos estão presentes na atualização deste texto.
No exercício de escapar da dicotomia, ao repensar o movimento a partir do chão da dança, tento vislumbrar a pausa como elo e não como oposição, a continuidade sem a ruptura e a espiral em lugar da origem e do fim, ou seja, sentir e agir na interligação e na implicação entre um e outro.
Como postulou Paul Klee, não tornar visível o invisível, mas tornar visível o visível.
(1) No 1o. trimestre deste ano, o Ministérios do Trabalho e Emprego resgatou 978 trabalhadores em situação análoga à escravidão, um recorde para o1o. trimestre de governo em 15 anos. O número também marca uma alta de 124% em relação ao primeiro trimestre de 2021.
Para a CPI contra o MST os partidos indicaram para a comissão,18 parlamentares que colecionam um passado de ofensivas contras as invasões rurais e de criminalização ao movimento social. O cotado para a relatoria é nada mais, nada menos do que Ricardo Salles., que já em 2018 defendia a tolerância zero ao MST. Enquanto Ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, gerou recordes recordes de desmatamento, queimadas, grilagem, garimpo e invasão de terras indígenas.
*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.