Produção cearense estreia em Paris destacando energia e singularidade de seus intérpretes

Crédito: AUTUMN

Por Amanda Queirós

Lucas Vaz descobriu a dança na adolescência. Aos 15 anos, enquanto os amigos se reuniam para jogar futebol, ele colocava um som para tocar e improvisava passos na calçada de casa. Hoje, seu palco é bem diferente das ruas da periferia de Fortaleza.

No fim de setembro, o bailarino esteve sob os holofotes do Chaillot, um dos principais teatros de dança de Paris, como parte do elenco de “Nosso baile”. Coreografado por Henrique Rodovalho, o espetáculo nasceu a partir de uma coprodução da Bienal Internacional de Dança do Ceará com a instituição francesa, atualmente sob a direção de Rachid Ouramdane, que mantém uma profunda colaboração com o evento cearense.

Em sua programação, realizada ininterruptamente desde 1997, a Bienal sempre destacou trabalhos do artista. Foi o caso de“Cover(2005), montado com a participação de brasileiros e apresentado em temporada internacional. A estreia de “Nosso baile” no Chaillot, em quatro sessões com casa cheia, dá um passo além nessa colaboração ao ter uma concepção inteiramente formulada com DNA nacional. Da criação de movimento, luz, música e figurinos à interpretação, tudo foi desenvolvido por artistas de cinco estados brasileiros.

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Para a Bienal Internacional de Dança do Ceará, a coprodução abre muitas frentes: ao mesmo tempo em que fortalece intercâmbios com o exterior, amplia as perspectivas de financiamento de novas obras e oferece oportunidades de atuação profissional, algo especialmente valioso para jovens como Lucas.

“Comecei meio autodidata, no hip-hop. Depois fui parar em projetos sociais e no Curso Técnico em Dança do Porto Iracema das Artes. Aí tive a oportunidade de participar desse desafio, um projeto com Rodovalho, estreando em Paris. O Lucas que dançava nas calçadas não visualizava que isso pudesse acontecer”, diz o artista de 27 anos.

A origem de “Nosso baile” remonta a 2021, quando a Bienal recebeu o espetáculo “Isso dá um baile!”, encenado pelo Balé da Cidade de São Paulo. Presente na plateia, Ouramdane se animou com a energia da produção e desejou programá-la para Chaillot. O espetáculo, no entanto, se transformou em tema discussão pela forma como teria abordado linguagens das culturas periféricas sem aprofundar a conexão delas com seus contextos de origem.

Criador e diretor da Bienal, David Linhares propôs então refazer a obra com uma nova roupagem, incorporando bailarinos com corpos e técnicas múltiplas, boa parte deles negros e enraizados nas danças urbanas. A princípio, Rodovalho ficou receoso em retomar o projeto. “Depois pensei que poderia dar muito certo, porque isso iria trazer várias propostas de movimento e diversidade”, afirma o coreógrafo, reconhecido por sua trajetória de quase quatro décadas à frente da Quasar Cia de Dança.

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Chaillot deu então carta branca ao projeto e o elenco começou a ser composto. Dos 15 artistas convidados, 8 são egressos do mesmo curso técnico do qual Lucas fez parte. Com 20 anos de existência, a iniciativa mantida pelo Governo do Ceará se tornou uma referência em capacitação e formação de artistas no estado.

“Isso é fruto do movimento social organizado da dança e de uma política continuada, que se soma a outras experiências, como o curso básico da Vila das Artes (mantido pela Prefeitura de Fortaleza). Nada que não seja contínuo produz algo com força”, aponta Luísa Cela, secretária da Cultura do Estado, que acompanhou a estreia na França.

O time se completou com bailarinos baseados em Salvador e São Paulo. As diferentes origens exigiram uma logística complexa para viabilizar a montagem, realizada em Fortaleza, em julho, em formato de imersão. O grupo voltou a ensaiar apenas um mês depois, em dois núcleos separados, até se reunirem por completo em Paris a poucos dias da estreia, no dia 24 de setembro.

Durante o processo, cada bailarino desenvolveu um solo baseado em músicas de sua escolha, que passeiam por gêneros do funk à guitarrada. “Alguns coreógrafos não permitem que a gente dê opiniões. Mas esse processo também foi de criação nossa. Tivemos a oportunidade de levar um pouco da nossa dança e construir junto”, afirma Laiane Carmo, baiana de 29 anos com passagem por várias companhias de Salvador.

Após essa etapa, Rodovalho lapidou as sequências de cada um, costurando a dramaturgia e adicionando diálogos corporais nos quais os movimentos de um contagiam os dos outros. A ele coube ainda coreografar os momentos de conjunto, que ressaltam a força e a coletividade das danças sociais.

Quando todos interpretam os mesmos passos, fica nítida a singularidade de cada bailarino. Isso está também nos figurinos, pinçados em brechós e no acervo pessoal dos artistas. Mais do que uniformizar a execução, o resultado ressalta justamente as particularidades dos intérpretes.

Essa apropriação foi determinante para a mudança do nome da obra: ao utilizar a primeira pessoa do plural, “Nosso baile”dá protagonismo à dança de quem está no palco. “Cada um traz, consciente ou inconscientemente, um pouco da sua trajetória e do seu movimento. Fiquei muito satisfeito e feliz, porque consegui vê-los como eles são, verdadeiros e plenos”, afirma Rodovalho.

Uma das artistas em cena é a bailarina Daniela Moraes, de 33 anos. “Essa é uma forma de a gente mostrar que o Brasil não é uma coisa só. Ele tem cores e estilos diferentes, com uma multiplicidade de corpos e tudo o que eles trazem”, diz ela, formada em dança pela Unicamp e com atuação na cena independente paulista. “Nesse sentido, é uma obra muito verdadeira.”

Há outro elemento significativo na estreia de “Nosso Baile”em Paris. Ela foi a única produção de dança de fora do Sudeste a integrar a programação da Temporada do Brasil na França, realizada em comemoração aos 200 anos de relações bilaterais entre os países.

Sinalizando possibilidades futuras de intercâmbio, a iniciativa faz parte de um programa de internacionalização crescente da Bienal Internacional de Dança do Ceará, intitulado Conexões Artísticas Internacionais (CAIS), que ao longo do ano percorreu ainda Cabo Verde e Portugal.

A programação além-mar foi pensada por David Linhares em parceria com o cabo-verdiano Djam Neguin, do Festival Kontornu, e incluiu artistas cearenses como Silvia Moura, Rosa Primo, Clarice Lima e a Paracuru Cia de Dança. Segundo o diretor da Bienal, a riqueza do intercâmbio com outros países do sul global está no desenvolvimento de curadorias que aprendem com os desafios de seus pares e, assim, se fortalecem para responder às demandas específicas de cada lugar.

Esse quadro ressalta como eventos não são, necessariamente, apenas ações pontuais, conforme indica Luísa Cela. “A Bienal tem a capacidade de estimular núcleos de produção em dança no Estado. Com ela, construímos programas de intercâmbio, de formação, de criação. As turnês internacionais constroem referências e ampliam conexões. Isso é algo que não acaba porque está dentro de uma política. E a gente fica muito feliz de ver a dança do Ceará ter essa relevância”, afirma a secretária.

Após uma boa receptividade em Paris – que incluiu palmas ritmadas com a música nos agradecimentos -, Linhares não tem dúvidas do sucesso que “Nosso baile” fará em suas próximas apresentações, em casa, durante a 15ª edição da Bienal Internacional de Dança do Ceará, nos dias 23 e 24 de outubro. “O público vai uivar quando assistir e vai se identificar porque essa dança está dentro de cada um desses bailarinos”, diz, sorrindo.

* Amanda Queirós acompanhou a estreia de “Nosso Baile” a convite da Bienal Internacional de Dança do Ceará *

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