Crédito das Fotos: Sammi Landweer
Após exatos 2 anos, voltei ao teatro para assistir um espetáculo de dança. Diante do desencanto de atravessar (e ainda estar atravessando) uma crise sanitária e uma crise política, pude reviver a sensação de uma prática tão importante para minha vida (e de tantos). Ir ao teatro, partilhar de um ritual, encontrar pessoas e principalmente: imaginar outros mundos juntos. Prática que estava guardada, durante o tempo pandêmico, adormecida pelas lives e tentativas de imaginação do que poderia ser a experiência de estar nesse ambiente, para experimentar a dança – que se faz no palco- mas também no corpo de quem vê, a partir da empatia cinestésica[1].
O frio na barriga da estreia, o terceiro sinal, as luzes baixando. Fui encontrar, novamente, as paisagens encantadas de Lia Rodrigues. Coreógrafa que acompanho de perto desde 2007, durante a pesquisa que realizei sobre o espetáculo Encarnado para meu doutorado em Psicologia Social[2]. Naquele momento me perguntava sobre os efeitos políticos que um trabalho de dança contemporânea pode ter em uma comunidade. Ainda transito em torno das mesmas questões, agora atravessadas pelo Antropoceno e a emergência climática.
O Encarnado, espetáculo de Lia de 2005, foi o primeiro que ela criou depois que mudou sua residência artística para a Favela da Maré, no Rio de Janeiro, sempre em proximidade e parceria com a Redes da Maré, que culminou na criação do Centro de Artes da Maré. Nesse espaço, que funciona como um centro cultural e educacional, a Companhia criou também, entre outros trabalhos, FÚRIA, PARA QUE O CÉU NÃO CAIA, PINDORAMA, POROROCA e PIRACEMA e o ENCANTADO (esse último que estreou em Paris em 2021, e agora em São Paulo). Também recebeu artistas e outros espetáculos, residências e funciona como uma escola de artes com vários projetos de formação e parcerias institucionais que fazem viver não só o trabalho da companhia, mas uma constelação de ideias e ideais sobre o que pode a arte num contexto de pobreza, violência e exclusão. Uma paisagem que é esquecida por políticas públicas do Estado, de cuidado, assistência social e principalmente: arte e cultura.
Foi nesse espaço que muitas ações sociais foram realizadas durante a pandemia e puderam ajudar e organizar a comunidade de Nova Holanda. “Maré Diz Não ao Coronavírus”, movimento lançado pela REDES, teve justamente esse espaço para receber toneladas de alimentos e produtos de higiene para mais de 17 mil famílias. No meio disso, a companhia ensaiava e ensaia. Porque o espaço segue vivo e segue atuando como refúgio para uma comunidade vulnerabilizada por políticas de morte e desencanto. Encantado foi gerado, gestado e nasceu nesse tempo. Teve sua estreia em Paris, e agora chega aos palcos de São Paulo, no SESC Pinheiros.
Encantado começa como uma grande cerimônia, um tapete gigante é estendido no palco pelos bailarinos. Sagrado e profano se misturam nessa não-separação da arte/vida. A vida, essa que pulsa no palco, como uma paisagem, que carrega junto com o arranjo coreográfico um território inteiro, com suas memórias, dores, alegrias, belezas. É como se os corpos, matéria, imagens e som levassem junto com eles um contexto que ninguém pode esquecer que existe, e deixar de lutar por ele, em nenhum momento: a paisagem de uma periferia, no Brasil.
Para os ecologistas, a paisagem é uma unidade de diferença interna. A questão central de se estudar paisagens está em apreciar sua heterogeneidade. Uma paisagem é um mosaico de fragmentos florestais, isto é, agregados de formas de vida que vivem umas em torno das outras. É nas diferentes dinâmicas de cada fragmento que a heterogeneidade da paisagem se realiza (Tsing, 2019). Por sua vez, para os geógrafos culturais, a paisagem é um sistema cultural e político. A questão é entender o conjunto de princípios estruturais que a mantém unida. Princípios estéticos podem ser importantes, e histórias políticas desempenham um papel. A peça-chave sobre uma paisagem, no entanto, é que ela é uma unidade que pode ser contrastada com outras paisagens, conformadas sob diferentes princípios. É a estrutura fragmentada da paisagem, a diferença interna, que fascina.
As paisagens psicossociais também são importantes. Elas se fazem ao mesmo tempo “que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos” (Rolnik, 1989).
O Encantado de Lia Rodrigues nos transporta para essas paisagens encantadas, de fragmentos, sonhos, lutas, possíveis e impossíveis. Fascina porque é justamente heterogênea. Se organiza e desorganiza diante da violência, do desespero e do caos. É uma força de reconstruir, destruir, sustentar e resistir ao desencanto.
Os 11 bailarinos dançam com 140 cobertores e as formas humanas e não humanas, vão se criando diante dos nossos olhos. Num jogo de aparecer e desaparecer, depois de retornar e voltar a sumir. De uma construção delicada à uma catarse coletiva, cada passo é coreografado com a minúcia que lembra uma floresta: no meio de uma paisagem aparentemente confusa, se a gente souber olhar, veremos formas e arranjos incrivelmente estruturados e complexos. Uma simplicidade que só é conseguida ao longo de muito esforço e trabalho comum.
A ideia do comum também está ali o tempo todo. Ninguém faz nada sozinho e as alianças são absolutamente necessárias para construir belezas. Assistir isso é muito interessante e potente, e ganha força com a música que entoa ao fundo: “caminhemos sem impedimentos/ Vamos respeitar a força dos grandes guarani mbya/ fazer ouvir nosso canto” – trechos de músicas do povo guarani mbya cantadas durante a marcha dos povos indígenas contra o marco temporal, realizada no ano passado, em Brasília, toca em looping, na trilha, composta e mixada por Alexandre Seabra. Mais uma paisagem que ninguém pode esquecer e deixar de lutar por sua preservação.
A força das culturas afro-ameríndias aparecem não só na trilha, mas nas imagens e gestos dos bailarinos e cobertores, e nos apresentam uma vasta manifestação das “encantarias”, presentes em todas as encruzilhadas desse país. É como se houvesse um resgate também, de conteúdos para preservar, junto com essas paisagens: os encantes, os encantados, a encantaria. Tecnologias de existir, diante das plantations e do desencanto – desertos da monocultura.
“O encantado é aquele que obteve a experiência de atravessar o tempo e se transmutar em diferentes expressões da natureza. A encantaria, no Brasil, plasmada na virada dos tambores, das matas e no transe de sua gente cruza inúmeros referenciais para desenhar nas margens do Novo Mundo uma política de vida firmada em princípios cósmicos e cosmopolitas” (Simas e Rufino, 2020, p. 6).
A noção de encantamento de acordo com Simas e Rufino (2020) é a própria integração entre todos as formas que habitam a paisagem, entre o visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão entre diferentes espaços-tempos (ancestralidade). O encantado é quem circula entre esses tempos e planos, e que transmuta a opressão colonial, a domesticação em instauração de mundos e paisagens diferentes. “Ou seja, o encante é fundamento político que confronta as limitações da chamada consciência das mentalidades ocidentalizadas” (Simas e Rufino, 2020, p. 7).
No espetáculo o encanto vai se operando, principalmente, a partir do que não se vê. Do que está na paisagem, mas que permanece em segredo. Do que acontece enquanto está por baixo dos cobertores, das cores. Justamente no lugar que o olho não alcança (ainda), mas sente, enquanto a gente canta/dança. A palavra “encantamento” vem de uma palavra francesa, chanter, que significa cantar.
O Encantado que Lia Rodrigues nos apresenta junto com sua companhia (maravilhosa e diversa), é sobre isso: “cantar” o mundo para trazê-lo à existência. Ou melhor: “dançar” o mundo para trazê-lo à existência. Essa “canção” ou essa “dança” inclui poesia, é rapsódico e profético. Cerimônia sagrada e profana, que não tem fim, segue espiralando. É uma realização em coro e parte de uma paisagem multiversa: um caminho de mata fechada, para onde, no horizonte, aponta o desejo de seguir: juntos, fortes e encantados com a potência da vida.
SERVIÇO
Encantado
De 17 de março a 10 de abril de 2022.
SESC Pinheiros
Local: Teatro Paulo Autran (1010 lugares) – R. Pais Leme, 195 – Pinheiros, São Paulo – SP, 05424-150
Quinta a sábado, às 21h. Domingos, às 18h
Ingressos: R$ 40 (inteira), R$ 20 (credencial plena/meia)
Duração: 60 minutos
Classificação: 16 anos
https://www.sescsp.org.br/programacao/encantado/
Não deixe de rever Fúria no mesmo teatro!
Fúria
Dias 14, 16 e 17 de abril de 2022
Quinta e sábado, às 21h. Domingo, às 18h
Ingressos: R$ 40 (inteira), R$ 20 (credencial plena/meia)
Duração: 70 minutos
Classificação: 16 anos
REFERÊNCIAS
FOSTER, Susan. “Choreographing Empathy: Kinesthesia”. In: Performance. New York: Routledge, 2011.
GUZZO, M. S. L. (2010). DANÇA EM AÇÃO- POLÍTICA DE RESISTÊNCIA NO ENCARNADO DE LIA RODRIGUES. Movimento (Porto Alegre), 16(2), 111–127. https://doi.org/10.22456/1982-8918.9928
ROLNIK, Suely B. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Ed. da UFRGS, 2012.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Encantamento sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.
TSING, Anna. Viver nas ruínas: Paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: Mil folhas do IEB, 2019.
[1] A empatia é uma possibilidade de decifrar essa percepção ou, como argumenta Susan Foster (2011), a empatia consiste no ato de proporcionar também para quem assiste as sensações cinestésicas dos artistas, as imagens que sintetizam suas experiências física e emocional. O termo “empatia cinestésica” busca explicar a conexão entre artista e público, que depende da história de quem faz e assiste e também das tecnologias presentes no momento de construir a experiência cênica. A experiência cinestésica vem da intenção, do desejo de compartilhar o sensível.
[2] Tese de doutorado defendida em 2009, na PUC-SP, no programa de pós-graduação em Psicologia Social. Publicada em 2010 pela revista movimento (GUZZO, 2010)