Espetáculo Réquiem SP do Balé da Cidade de São Paulo, dirigido por Alejandro Ahmed. Foto: Larissa Paz para o UOL.
Recentemente tivemos um caso que (apesar da rotina), estávamos um tempo sem notícias nas mídias tradicionais sobre dança contemporânea. Com manchetes em jornais, entrevistas e coberturas, a apresentação do espetáculo Réquiem SP na abertura do tradicional Festival de Dança em Joinville virou notícia.
Dirigido pelo coreógrafo Alejandro Ahmed e também diretor do Balé da Cidade de São Paulo, foi construída uma experimentação crítica sobre os gestos, sons, frenesis e percepções do corpo frenético na capital de São Paulo.
Esse resultado faz parte da grande pesquisa que o coreógrafo experimenta há mais de 30 anos com a companhia Cena 11, localizada em Florianópolis, escolha essa que conta muito sobre a notícia em questão. As cidades e espaços contam muito sobre nosso corpo, da maneira que o cotidiano afeta a forma como conduzimos nossos movimentos. O efeito pode nos contaminar de muitas formas, como uma ansiedade social, combustão de informações e o calabouço de ruídos e violências.
Em sua pesquisa, reflete a dança como uma resposta experimental, pensa a dança como uma prática reflexiva, política, social e consciente sobre a musculatura física, afetiva e coletiva. No livro “A dança dos encéfalos acesos” da autora Maíra Spanghero (Doutora no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC, São. Paulo), descreve sobre essa prática:
“[…] dentro do sistema dança, um corpo que dança recebe essas informações do mundo do sistema dança, que já está carregado de informações do mundo, informações estas que passam a ser internalizadas pelo corpo que dança. Esse corpo manda informações para o sistema dança, que as manda para o mundo. Todo o tempo as trocas são permanentes entre o interno e o externo e isso se chama coevolução” (MARTINS, 1999, p.29 apud Spanghero, 2003, p.19).
A dança como uma infestação entre o que ocorre internamente sobre o corpo, na ocorrência e contaminação das informações que nos rodeiam, faz de nós grandes receptores de informações e também reage como em expressões distintas. Explicar o que é e o que pode a dança é o que motiva o desejo da experimentação; as informações recebidas e criadas muscularmente, constroem relações estéticas e poéticas. E é nesta fissura que o Cena 11 compõem a sua dança:
“A relação entre o universo que o Cena 11 habita e o tipo de dança que formula tem no corpo o lugar privilegiado para expandir-se. Isso traduz um entendimento coevolutivo entre homem e ambiente, corpo e máquina, carbono e silício. O corpo é o lugar permanente do trânsito entre natureza e cultura.O corpo é mídia de seu estado, do jeito que as informações ali se organizaram. O corpo expressa o que ele é” (Spanghero, 2003,p.23).
Entre o que ele é e o que pode vir a ser, retorna ao ponto inicial dessa conversa, com a polêmica da apresentação do novo espetáculo, agora protagonizada pelo Balé da Cidade de São Paulo, expressou o estranhamento do público ao que o corpo pode provocar.
Infelizmente, não estava presente e ainda não conferi o novo espetáculo, mas diante de como essa informação me contaminou, a resposta a isto, se corporifica em uma reflexão sobre o estranhamento e espelhamento do público, como podemos compreender a rejeição e aversões a obras artísticas do nosso tempo.
Apesar das críticas sobre o espetáculo exaltarem coisas absurdas, a discrepância da dança vs reações adversas de uma parcela do público, revela também, as novas contaminações, violências e ruídos que o contexto social nos influencia.
Artaud, em seu aclamado livro “Teatro e Seu Duplo”, reflete sobre as obras-primas e a relação do público sobre a recepção de novas obras, e comenta: “Foi porque se empenharam em fazer viver, em cena, seres plausíveis, mas desligados, com o espetáculo de um lado e o público do outro foi por se mostrar à massa apenas o espelho daquilo que ela é” (Artaud,1989, p.80-81).
E isso soma com o que o próprio Alejandro Ahmed comenta em entrevista NSC TV, afiliada da TV Globo em Santa Catarina:
“A gente espera ser sempre o mais honesto possível, e honesto no sentido de realmente ofertar a dança como campo de conhecimento e não só como entretenimento, e poder trazer isso para um festival, amplia a perspectivas com o diálogo que a gente pode ter com a plateia”.
Freud, em seu conceito unheimlichkeit, traduzido como infamiliar expressa uma curiosidade acerca das possíveis reações e diálogos polêmicos:
“O que confere ao infamiliar o seu grau de angústia diz respeito ao fato da repetição trazer à tona algum tipo de conteúdo reprimido em um tempo remoto e superado de volta. Nesse sentido, a repetição traz violentamente elementos cujo significado recalcado reaparecem e provocam os sentimentos relacionados ao unheimlich, isto é, a angústia, a repulsa, o medo e a dor” (Monteiro, p. 63).
Reações de estranhamento às obras podem acontecer como um grau de algo recalcado em nosso inconsciente, afinal, uma obra que se conduz como um Réquiem, trata da morte como algo simbólico em nossa sociedade.
“A estranheza do retorno do mesmo deriva de um fenômeno que Freud estudou em O mal estar na civilização alguns anos depois conhecido como narcisismo das pequenas diferenças. Para o psicanalista austríaco, o que muitas vezes causa estranheza ou ódio não é aquilo de radicalmente diferente, muito pelo contrário, é alguma coisa muito similar, muito próxima. Freud tentava explicar a civilização a partir desse conceito quando preocupou-se em entender o ódio e a intolerância entre comunidades relacionadas mutuamente sob diversos aspectos – territoriais e culturais – tais como os portugueses e os espanhóis ou os alemães do norte e os do sul” (Cf. Freud, 1996, p. 119 apud Monteiro, p.63).
Para concluir esse pensamento que pode durar mais que o tempo da coluna, reflito sobre a estranheza nas obras também como um lugar de espelhamento que voltamos a primeira citação do Artaud: “foi por se mostrar à massa apenas o espelho daquilo que ela é” (Artaud, 1989, p.80-81) é uma condição conflituosa, que ora pode ser violenta, como também reveladora. E assim finalizo sobre o que Artaud deseja como artes cênicas:
“Um teatro que, abandonando a psicologia, narre o extraordinário, ponha em cena conflitos naturais, forças naturais e sutis, e que se apresente antes de mais nada como uma excepcional força de derivação” (Artaud,1989, p.88).
Obrigado Alejandro Ahmed, que em mais de 3 décadas de experimentação artística, também resiste a estranhezas, conflitos e ilusões sobre o que pode ser a arte com reações adversas. E que segue corporificando desejos e estéticas que contam sobre como é viver e ter um corpo neste tempo.
Gabriel Paleari