Entre sacolas plásticas, emblemas e tentáculos: impressões sobre a obra 2415

Crédito das Fotos: Divulgação

Após o toque de um sino, seguimos a orientação de descer umas escadas. Descemos, descemos, descemos. Há um escafandro pendurado. Descemos mais um pouco e chegamos a um espaço menos claustrofóbico: o hall do teatro, cujo nome faz juz ao percuso que se percorre até ele: Teatro do Centro da Terra. Chama atenção uma placa onde está escrito: “Você está sob o rio Pinheiros”. Somos então orientados a aguardar a chegada do restante do público e após alguns minutos finalmente somos convidados a entrar na sala onde a performance acontece. O espetáculo está começando.

A sonoridade remete ao fundo do mar. Luz baixa, fumaça e, no centro, uma enorme colcha formada por sacolas plásticas cobre o espaço cênico. São sacolas de marcas conhecidas: Livraria Cultura, Mambo, Mercado Livre, Leroy Merlin, etc. O público se posiciona ao seu redor. O manto plástico respira. O movimento causado pela elevação de um lado do manto reverbera lentamente até outra parte dele como uma corrente marítima. Quantos seres vivos estão sob esse manto? São seres vivos? A sensação de marolas – água – se alterna com a sensação asfixiante do plástico. Sim, ele respira, mas tem ajuda mecânica de uma ventoinha que lança ar para baixo dele. Pouco a pouco, revela-se que o movimento não é só dessa respiração mas também de um corpo – vivo? – que está ali embaixo. O som de águas permanece como um mantra e às vezes ouvidos atentos identificam um outro som, uma discreta sirene, como aquelas que indicam uma emergência. O corpo se move e seus membros-tentáculos agitam o mar plástico, a performance se desenrola. A essa altura, o corpo da permormer, o figurino tentacular, o plástico e os emblemas estampados nas sacolas são um corpo só, pesado, desajeitado, desforme, respirando por aparelhos. Serão assim os habitantes do planeta Terra em 2415?

A performance-dança-instalação, concebida e performada pela atriz e bailarina Marcela Páez, partilha com o espectador fabulações possíveis de um futuro não muito distante, o ano 2415, em que nosso planeta seria (ou será?) dominado por seres de plástico, resultado do consumo desenfreado e do pouco caso com a natureza e o que resta dela. A performance aborda uma temática absolutamente urgente em nosso contexto de destruição do meio-ambiente, temática evidente já no início do espetáculo, quando vemos o enorme manto de sacolas respirando por aparelhos. O tempo dilatado de toda a ação cênica é outro fator que contribui para a inserção do espectador na fabulação proposta: lá no futuro, quando nossa existência material for reduzida a pó, a sacolinha plástica de nossa compra de hoje ainda perdurará. É possível estabelecer um diálogo entre 2415 e outro solo de dança apresentado recentemente em São Paulo, Plasticus Dei, de Andréia Nhur. Nele, por meio de outros recursos expressivos, a artista também desperta uma crítica a nosso mundo consumista utilizando o plástico como metáfora e o plástico forçadamente integrado ao corpo gerando danças por vezes aflitivas. Tal aproximação salienta, não por mero acaso, a percepção das artistas de que a iminente destruição do planeta não vai passar despercebida.

Em 2415, embora haja um breve texto falado por uma voz em off, que situa o espectador no universo proposto, a comunicação com o público se dá muito mais no âmbito das sensações do que do discurso racional. São as sensações despertadas pelas imagens formadas pelo corpo da artista, figurino e colcha de sacolas, em conjunto com a ambientação sonora e a iluminação, que levam às reflexões acerca do tema urgente que Marcela deseja discutir poeticamente. A pergunta que resta ao final é: sendo essa a perspectiva de futuro apocalíptico, quais ações estão ao nosso alcance para adiar o fim do mundo? Uma delas pode ser é a criação artística. Não vai barrar o apocalipse, mas quem sabe, poderá adiá-lo.

Patricia Cornacchioni Alegre

Patricia Cornacchioni Alegre

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Arte-educadora e bailarina, mestranda em Artes Cênicas ECA-USP e Especialista em Arte-Educação pela mesma universidade. Iniciou no balé em 1993 no Estúdio de Ballet Cisne Negro. Estudou diversas vertentes dança contemporânea, contato improvisação e danças sociais. Atuou como bailarina, produtora e videoartista em grupos de dança e teatro paulistanos e concluiu formação de professores do Centro de Estudos do Balé coordenado por Zélia Monteiro, além de ser professora registrada pelo método da Royal Academy of Dance.  Em 2021 lançou o livro infanto-juvenil “Balé: Pequena História de uma Dança” pela Editora Skoobooks. Hoje é educadora social no Projeto PALCO, ministra aulas de balé na Sede Cultural, em São Paulo e desenvolve sua pesquisa de mestrado.