Dani Lima e a dança que emocionou o cinema: A coreógrafa por trás do filme brasileiro vencedor do Oscar como melhor filme internacional

Crédito da imagem: Valentina Herszage 


A coreógrafa revela os bastidores da dança que deu vida à cena mais nostálgica de
Ainda Estou Aqui, filme que levou Fernanda Torres ao Globo de Ouro e ganhou uma estatueta na maior premiação do cinema.

A dança tem o poder de contar histórias, resgatar memórias e traduzir emoções sem precisar de palavras. No filme Ainda Estou Aqui de Walter Salles, essa força se manifesta na icônica cena da festa familiar, onde gestos e passos espontâneos criam uma atmosfera repleta de afeto e nostalgia. A mente por trás desse momento inesquecível é Dani Lima, coreógrafa experiente que mergulhou nos anos 70 para dar autenticidade ao movimento dos personagens. Em um bate-papo exclusivo, ela compartilha os desafios e inspirações desse trabalho, que agora brilha na temporada de premiações.

 

1. Você tem uma trajetória consolidada como coreógrafa. Como descreveria sua abordagem e estilo na criação de movimentos para o cinema?

Eu não sei se tenho um estilo de criação de movimentos exatamente. Na verdade, procuro ouvir o que o diretor está desejando, qual é o projeto estético, e o registro gestual está presente em cada contexto. Às vezes é um registro mais estilizado, outras vezes mais realista, pode ser quase imperceptível ou beirando o expressionista…

O convite do Walter Salles era para criar uma festa na sala de casa de uma família do Leblon, em 1970. Queria que os passos fossem marcados, mas sem que isso fosse visível enquanto coreografia, mas que estivesse diluído na cena do filme. Esse foi um grande desafio: criar uma sequência de passos, definir um desenho espacial e coordenar os movimentos de um grupo de pessoas sem que a coreografia aparecesse enquanto coreografia, mas sim como algo espontâneo dentro da narrativa.

2. Como surgiu o convite para coreografar a cena de “Ainda Estou Aqui”?

Fui convidada para coreografar a cena da festa e, também,um momento anterior, onde as duas adolescentes brincam, dançando maliciosamente, é uma cena que vem antes da festa. O convite veia partir de uma indicação da Cláudia Kopke, figurinista do filme, com quem já havia trabalhado em outros projetos, como a novela “Boogie Oogie” da TV Globo, ambientada nos anos 70.

Tivemos uma reunião com o Walter e a preparadora de elenco Amanda Gabriel . E na reunião o Walter explicou o que queria, mostrou algumas referências e perguntou se eu poderia contribuir. Como já havia pesquisado bastante a corporeidade dos anos 70, que tem uma vitalidade maissolta e mais livre do que a corporeidade dos anos 2020, achei que poderia ajudar.

 

3. A cena se passa nos anos 70 e tem como trilha “Take Me Back to Piauí”, de Juca Chaves. Como foi feita a escolha dessa música e como ela influenciou as decisões coreográficas?

Walter já trouxe essa música. No filme, Rubens (Selton Mello) troca o disco do David Bowie , dizendo _”chega de música gringa”, e põe o Juca Chaves, uma espécie desamba-rock. Fiquei imaginando quais seriam as referências de dança desta família. Na época o Brasil consumia muito  a cultura norte-americana e pesquisando, descobri que os Jackson 5 haviam lançado “I Want You Back” em 1969, e tinha uma coreografia. E me lembrei que as danças dos Jackson 5 eram muito populares e imitadas pelas crianças e adolescentes na época, então propus um passinho deles para o Marcelo fazer numa rodinha com as irmãs. Também me baseei em memórias da minha infância, nas festas na casa da minha família. Eu me lembro que se dançava uma mistura de danças do anos 60. Houve uma proliferação de estilos de dança nos anos 60, normalmente associados a um estilo ou ritmo musical.Então eu propus usarmos o Twist na cena do pai (Selton Mello) dançando com a filha, que é uma dança que ainda se dançava bastante nas festas dos anos 60, e buscamos experimentar misturar diferentes estilos com o elenco jovem.

 

4. Quais foram os principais desafios ao coreografar uma sequência dançada por atores como Fernanda Torres e Selton Mello?

No livro, há uma referência explícita à dança do casal, mencionando que eles dançaram aquela noite como provavelmente faziam na juventude deles, com grande intimidade. Isso nos levou a coreografar alguns passos, inspirados no Foxtrote e no Hustle, esta dança a dois onde normalmente o homem conduz a mulher a rodopiar pelo espaço.  A coreografia do casal tinha uma estrutura marcada mas também muita improvisação. O propósito não é que eles dançassem como bailarinos, mas que se apoiassem em uma organização coreográfica e espacial para ficar à vontade e improvisar.

5. O que guiou a composição dos movimentos para essa cena? Você se inspirou em referências específicas da época ou buscou um estilo mais livre?

Usei referências específicas dos anos 50/60, como o Twiste o Foxtrote, e também de danças que se popularizaram na época, como “The Swim” e “Loco-Motion”, que surgiram no universo pop inspiradas em sucessos musicais. Essas danças  e também as danças soul dos Jackson 5 foram referências especialmente para as crianças e para os adolescentes da família. A ideia era gerar sobretudo uma atmosfera de vitalidade e alegria, sem preocupação de “acertar os passos”, pois os personagens não eramdançarinos, então os movimentos precisavam brincar com as referências da época de forma espontânea.

 

6. Como foi o processo de ensaio e preparação do elenco para essa sequência? Algum momento ou detalhe do processo te marcou especialmente?

Em geral eu passava as referências de corporeidade e dos passos específicos, e experimentávamos juntos, buscando naturalidade. Trabalhamos a relação do corpo com pulsação da música a liberação da cintura escapular característica das danças dos anos 60, sem exigir execução impecável. Um momento importante foi a construção da dança entre Fernanda Torres e Selton Mello. Queríamos que fosse como um reencontro, que acontecesse uma intimidade e alegria de dançar juntos já conhecida deles. E é claro que eles interpretaram isso lindamente.

 

7. O filme ganhou Oscar como melhor filme internacional e essa cena tem sido muito comentada. Como você vê a importância da dança dentro da narrativa cinematográfica e o impacto que essa cena pode ter no público?

A dança tem a potência de contar histórias sem palavras, de transmitir emoções e criar conexões de forma íntima, tocando diretamente os corpos de quem dança e de quem assiste. Nessa cena, a dança representa muito mais do que uma festa: Ela retrata as conexões afetivas, a vitalidade e a alegria daquela família, às vésperas de mergulhar em um período de tristeza e tragédia familiar e histórica. Ver essa sequência ser tão comentada é muito gratificante. Espero que cada vez mais pessoas se conectem com o filme, se emocionem com a  história desta família e com a força de Eunice Paiva, e que percebam a importância de mantermos a vitalidade da nossa democracia a todo custo ainda hoje em dia.

Carol Contri

Carol Contri

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Fundadora e Diretora Artística do Espaço Co.Art e da Cia Co.Art de Dança Contemporânea, formada em ballet clássico pelas metodologias Vaganova e Cubana e em Dança Contemporânea. Cursou Metodologia Vaganova pela Escola do Teatro Bolshoi Brasil e docência em dança contemporânea pela EDASP – Escola do Theatro Municipal de São Paulo. Jornalista, licenciada em Letras, Especialista em Psicopedagogia pela Universidade Anhembi Morumbi e Especialista Letras – Processos de Ensino e Aprendizagem pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.  Professora de ballet clássico e dança contemporânea.