Bioglomerata – Ondas coreográficas esculpidas e abertura política

Crédito das Fotos: Rafael Salvador

Alguns artistas, em sua trajetória, pela continuidade efetiva de suas pesquisas, vão tornando-se algo como patrimônios fundamentais de seus campos de atuação. Passam a ocupar um espaço como parte do conhecimento produzido e referência de qualidade no fazer vivo de uma arte, que, se alimentada, se transforma no tempo. Cristian Duarte, coreógrafo paulistano, com carreira nacional e internacional, é um deles. Há algumas décadas (já se pode falar assim de Cristian) seus trabalhos estão presentes na dança em São Paulo, algumas vezes apontando caminhos, outras solidificando direções, mas sempre alimentando a dança, produzindo conhecimento compartilhado, formando artistas mais jovens e apresentando uma inteligência refinada em criações que transitam entre a produção conceitual e a materialização de ideias do/no corpo, em espaços e movimentos coreográficos contemporâneos.

Cristian assina, com assistência de Aline Bonamin e Lucas Lagomarsino, a coreografia Bioglomerata apresentada em agosto de 2024 no Theatro Municipal, pelo Balé da Cidade de São Paulo, com música composta por Tom Monteiro, executada pela Orquestra Sinfônica Municipal.

A peça é a demonstração de que a parceria dirigida por ele, entre os artistas (Duarte, Bonamin, Monteiro, em companhia de outros artistas também importantes nesse caminho, como Leandro Berton e Clarice Lima) – atualmente atuantes na Casa do Povo, centro cultural independente localizado no Bom Retiro, em São Paulo – que há cerca de uma década compartilham pesquisas e criações, atingiu, já há algum tempo, uma maturidade que situa este trabalho de modo diferente no ambiente da dança na cidade, como referência irrevogável para o campo das linguagens coreográficas, das artes cênicas e performativas contemporâneas.

Cristian parece não mais “testar possibilidades”, ou fazê-lo, como premissa de sua pesquisa, com enorme consciência do que propõe como criação artística. Sua coreografia é exata, esculpida de forma exímia, sem que em qualquer momento possa-se duvidar da sustentação da dança que se produz na peça.

E esculpir é um termo que pode ser perfeitamente aplicado ao pensar em Bioglomerata, pois a dança, presentificada pelo Balé da Cidade, uma recriação, que revisita Biomashup, trabalho do coreógrafo, de 2014, permite-se ser apreciada em diferentes camadas, de modo multidimensional.

Foto Rafael Salvador

Pode ser vista pelas qualidades de movimento e presença dos corpos dos bailarinos, em uma coreografia que não é simplesmente executada mas vivenciada pelos artistas, em um espaço-tempo que instaura e modifica o ambiente. Demanda postura ativa do espectador, ao engajar este em um convite para uma atenção refinada da percepção da dinâmica dos corpos, sons, materialidades, em conjunção. Também pode ser observada pela poética, que está além do movimento, algo mais comum em uma peça coreográfica, estruturando-se em danças pessoais, biográficas, concomitantemente dissociadas, em grupo, e organizadas em corpo coletivo, em uma multitude que expande o espaço cênico e cria possibilidades para os sentidos. Ao ponto da cena tornar-se um corpo de histórias individuais compondo uma dramaturgia de coexistência. À estas camadas sobrepõem-se, ou misturam-se, os sons, que, ainda que irrompam em frases, percussivas, de sopros, estabelecem-se no tempo como uma duração. Algo como um som-tempo, de timbres eletro-orgânicos. A construção é ainda perpassada pela iluminação. Criada pelo iluminador e pesquisador André Boll, também referência estabelecida na linguagem da dança, os elementos da luz, em alguns momentos, expõem-se de forma material, em relação objetiva com os corpos que também os fazem dançar. Cria-se, nesta conversa, entre todas estas camadas, que movem-se em ondas, e fazem o espaço também mover-se, uma dança de diferentes materialidades, tangíveis e intangíveis, que escreve no tempo da peça um discurso político, sensível, de diversidade, intensidade, vitalidade, sem legendas ou exageros, coreográfico, sonoro e visual, e que se estabelece no espaço-tempo presente – o espaço-tempo da performance.

Bioglomerata nos mostra também uma variação do que pode ser entendido como virtuosismo na dança dos bailarinos em cena. Os corpos do Balé da Cidade de São Paulo, que, certamente, facilmente poderiam executar os mais complexos movimentos em giros, saltos, quedas, apoios, espirais, entre outras muitas possibilidades, exploram qualidades sutis, igualmente complexas, fundadas em uma integração de memórias, emoções, cognições, funções e sentidos, e entre todos os outros elementos que estruturam os corpos como conglomerados vivos em permanente negociação com o ambiente, em transformação. Uma investigação relativamente recente para a dança, mas que a partir de Bioglomerata pode afirmar-se, mais evidentemente, como técnica coreográfica.

Encontrar estas proposições sendo investigadas, elaboradas e apresentadas por uma companhia de dança de tão grande alcance, em termos de público, como o Balé da Cidade de São Paulo, é dos acontecimentos a serem celebrados como enriquecimento para o cenário da dança na cidade e no país. E isto representa, de fato, uma abertura política institucional, que leva a companhia a outro ponto em sua linha histórica e outro patamar na diversidade dos pensamentos coreográficos que opera.

Este movimento político, de abertura para diferentes propostas, tem sido resultado da presença de Alejandro Ahmed como diretor artístico do Balé, tendo ele criado programações que abrem espaço para novos pensamentos de dança, paradigmas que, desta forma, intensiva, pela primeira vez são testados no espaço artístico-político da companhia.

Os resultados do trabalho de Ahmed podem ser extremamente positivos para a ampliação do repertório dos públicos do Balé da Cidade de São Paulo, desde que sejam continuados e incentivados. Novos padrões, paradigmas, entendimentos expandidos do que pode ser o fazer coreográfico demandam tempo para estabelecerem-se com públicos amplos. Por outra via, também os coreógrafos têm a oportunidade a partir desta abertura política, estética, do Balé da Cidade, de produzirem obras com os elencos e a estrutura da companhia, mostrar suas trajetórias e pesquisas, longevas como a de Cristian, para um maior público.

Bioglomerata representa muito bem este movimento, uma peça inusitada para um espaço cultural tão tradicional, o que constitui uma irrupção no tempo histórico dos, talvez, maiores patrimônios públicos da dança de São Paulo – o Theatro Municipal e o Balé da Cidade. Algo que deve ser visto como uma importante abertura política da dança para o trabalho de um artista que tem, com toda certeza, o tamanho de seu gesto artístico transformador em Bioglomerata, e para o paradigma de coexistência de saberes, conhecimentos, possibilidades estéticas, vidas corporificadas em dança, principal conceito apresentado por Cristian, Aline, Lucas Tom, André, a Orquestra Municipal e o corpo do Balé da Cidade de São Paulo nesta programação.

Rogério Salatini

Rogério Salatini

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Artista, produtor cultural e pesquisador de artes, Rogério Salatini foi diretor artístico e geral da Mostra Hiper_arte de Convergências (2016) e do projeto BDT Dance Television (2017/2018). Formou-se em dança na PUC/SP, é Mestre em poéticas visuais pela ECA/USP, e atualmente Doutorando em Artes Visuais na mesma instituição. É especialista em Gestão Cultural pelo Centro Universitário SENAC, e trabalhou em projetos premiados nas áreas de dança, artes visuais e programação cultural.