Avante meu povo!

Crédito das Fotos: Guto Muniz

Companheiras e Companheiros, estive na posição de articulador político pela Dança do país através da PNA – Política Nacional das Artes[1] e sinto me até hoje na necessidade de convocar e provocar o posicionamento de todos aqueles e aquelas (e foram muitos e de todos os setores das artes) que prontamente se dispuseram a participar dos encontros setoriais que realizamos para discutir avanços políticos para a dança no contexto daquela ação.

A PNA foi um processo proposto pelo Ministério da Cultura (que foi recentemente transformado de maneira esvaziada em uma secretaria do Ministério da Cidadania) através de uma de suas autarquias, a Fundação Nacional das Artes. Teve como meta atualizar os caminhos para a efetivação das políticas públicas de Estado  e de marcos regulatórios para as Artes, que foram desenhadas ao longo de 13 anos com ampla participação da sociedade civil.

Com um formato inovador, aquele processo elegeu como articuladores políticos membros da sociedade civil com reconhecida atuação setorial para provocar ideias, encaminhar propostas e promover mobilizações junto aos setores e aos gestores governamentais, no sentido de renovar as pontes de comunicação e credibilidade para que fossem feitos pactos sobre as prioridades que efetivassem os processos políticos em andamento.

No ano de 2016, infelizmente, a interrupção forçada da PNA deixou um vácuo e as discussões e encaminhamentos possíveis sofreram um lamentável golpe provocado pelas abruptas mudanças de rumo na política nacional. Ali se iniciava um retrocesso histórico ao qual repudio veementemente.

Avalio que, com esta interrupção, houve um adiamento (…) dos resultados possíveis de serem efetivados decorrentes daquele esforço social intenso. Os processos que foram pensados e organizados para ganhar efetivação enquanto ação, perderam a força com a mudança brusca de rumos de gestão do país.

Foram concentrados esforços humanos e recursos para levantar documentos e programas a partir de censos e mapeamentos do setor para nortear a construção de metas e ações para  a eficácia do SNC – Sistema Nacional de Cultura, que mesmo legalizado corre o risco de ser ignorado no conjunto de contextos políticos e administrativos.

Por todo este movimento ter sido considerado como uma ação politico-partidária e menos como uma política de Estado, temo que estejamos neste momento voltando a um ponto muito próximo do marco zero nas iniciativas de construção de uma democracia participativa popular. Mas o que não pode ser desconsiderado e acredito que merece ser valorizado como resultado positivo, é o desenvolvimento ampliado de processos de politização dos movimentos organizados pela sociedade civil.

Os sinais de organização de conferencias públicas de Cultura e de fóruns permanentes em alguns Municípios e Estados mantêm acesas as esperanças e vislumbres de maturação da população sobre seu papel cidadão.

Hoje, no ano de 2019, ao celebrar em meio a tantas ameaças autoritaristas no contexto mundial o dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial – 21 de março[2], gostaria de compartilhar abaixo, um artigo produzido por mim e publicado no contexto da PNA em 2015.  É uma republicação que cita aspectos de uma arte negra que se valida quando falamos da etnicidade e diversidade, aspectos inerentes ao povo brasileiro. 

PUBLICADO EM 30 DE NOVEMBRO DE 2015 E REVISTO EM 23 DE MARÇO DE 2019.

Desigualdade como mote para invisibilidade

Uma ‘teoria da ação social’ alternativa para o contexto da modernidade periférica brasileira e latino-americana, baseada em uma reconstrução sociológica criativa e crítica, gera olhares sobre o tema da desigualdade e da sua legitimação e naturalização no Brasil contemporâneo. Em busca de abrir caminhos para convites ao diálogo, abordo a obviedade histórica que torna a afro descendência do Brasil um tema invisível na discussão sobre procedimentos políticos no universo das artes.

As múltiplas identidades do ‘povo negro’ são temas sempre oportunos quando se discute arte no Brasil contemporâneo.  Socialmente, falar ‘negro’ (pela alta complexidade do termo) é falar de um forte eixo cultural e emocional brasileiro. Para muitos, é perturbador usar o termo ‘negro’ pois denota um posicionamento político e dá nome a uma visão separatista recheada de preconceitos históricos a partir da cor da pele dos indivíduos em sistemas de classificação racial. Ainda nos dias de hoje, aplicam-se critérios diferentes a quem é classificado como ‘negro’ e muitas vezes, variáveis econômicas, tais como classe social, também desempenham um papel relevante nesta (des)classificação.  

Alguns pensamentos, repletos de ignorâncias históricas sobre a construção de várias nações ou que reconhecem apenas como teoria cientifica a África como continente matricial da humanidade, usam como referência que o processo das diásporas negras africanas tenha se dado apenas através do êxodo provocado por processos de exportação humana na condição de escravos com histórias de dor e subjugação que não geram orgulho a ninguém. Por este prisma, até mesmo as histórias dos ricos reinados e das culturas milenares daquele continente, são suplantadas por imagens de fome e miséria ligadas a revoluções civis modernas patrocinadas por grandes nações do mundo.

Digamos que tudo isto contamina o inconsciente coletivo no trato com a população afrodescendente ou negra ou preta. As rotas do Atlântico Negro concentram um conjunto de culpas que afasta o continente africano de suas diásporas e vice-versa.

O Brasil é a maior nação Negra fora da África.  Isto confirma a história do novo continente e a trajetória de emigração de povos dos velhos continentes para as novas terras como estratégia de sobrevivência.  

Os povos do mundo (à distância) enxergam e interpretam o Brasil como um lugar de natureza privilegiada onde etnias, credos e culturas coexistem, resultando em uma construção de identidade a partir do encontro das semelhanças e das diferenças. Por uma certa visada antropológica isto é verdade. De perto os confrontos e conflitos mostram diversificadas realidades. Os corpos aculturados aqui, neste espaço geográfico, na sua complexidade de atitudes, absorvem e expressam experiências emocionais que merecem ser observadas, estudadas e confrontadas para que se possa acompanhar e valorar os movimentos desta nação.

Concentrado na construção de periferias para centros fixos, o contexto social aqui exercitado faz com que as discussões sobre a negritude brasileira ganhem ênfase na casa dos homens e mulheres de pele preta ou para aqueles simpatizantes que frequentam estas casas. É verdade que uma avaliação profunda de valores e um processo de reparação emocional se fazem necessários para que aconteça a apropriação desta negritude, pois é muito difícil relevar-se por completo que o primitivo sentido da palavra ‘negro’ no novo mundo era ‘escravo’. A busca por respostas e posições inclusivas em processos sociais e políticos leva ao desenvolvimento de convicções ideológicas, que somadas a dados estatísticos colhidos por censos técnicos e também à recente tomada de posse do direito à autodeterminação étnica, promovem paulatinamente a conscientização da nação deste forte traço de sua identidade.

Em função disso, é muito comum ver alguns desses ‘pretos convictos’ incumbidos de buscar justificativas e evidências sobre os pontos de confluência dos traços de origem matricialmente africana na identidade cultural do país. Estes ‘pretos convictos’ (algumas vezes pessoas de pele parda ou branca) acabam se responsabilizando pelo encaminhamento das discussões.

Tudo certo, salvo o equívoco de esquecer, por vezes, que as questões negras, assim como as questões indígenas e de miscigenação em geral, no caso de Brasil, dizem respeito a toda a nação. As questões de identidade que permeiam todo o planeta, aqui no Brasil estão cada vez mais conduzindo as gerações a buscar uma horizontalidade social para ocupar seus espaços de pertencimento. As questões negras são do país. Portanto tudo que ajuda a nação a assumir seus compromissos com seu lado afrodescendente é melhor para todos!

Um conjunto de manifestações artísticas, mesmo que hibridas, compõe um recorte conceitual na arte contemporânea. A Arte Negra. Pelo prisma epistemológico, esta determinação amplia as possibilidades de reconhecer e analisar a produção estética provocada pelo olhar objetivado em determinados argumentos sociais ou culturais. Argumentos transformadores e construtores da história humana e comumente expressados de maneira distinta. Em alguns países onde os grupos étnicos são maioria determinante, como é o caso do Brasil, o que se vê como produção artística ganha tendências que merecem ser destacadas. Portanto torna-se pertinente reconhecer as danças negras, o teatro negro, o circo negro, a música negra, as artes plásticas negras, as artes visuais negras, a literatura negra como manifestações identitárias brasileiras.

Ao se pensar em políticas públicas que medeiem ou regulamentem o fazer artístico é necessário refletir como dar visibilidade a estas questões. O conjunto de leis existentes não tem sido suficiente para lidar com as ignorâncias nefastas estabelecidas pela história mal contada sobre as matrizes do Brasil.

Existe um longo caminho a percorrer para que o povo brasileiro se aproprie de sua própria trajetória. Mobilizações da sociedade para apreciação e reflexão sobre cultura e as abordagens múltiplas dos vários conceitos concernentes à diversidade contribuem para o desenvolvimento do pensar e do fazer criativo. E tudo reforça o papel da cultura das artes como uma potente ferramenta de educação holística. Avalio que estimular esta discussão é de extrema importância para ampliar os limites das expressões da contemporaneidade neste Brasil pós- colonial e pós-escravagista.

Afinal não existe história sem arte.

“O futuro está sempre à sua frente… ou às suas costas, cada vez que você dá meia volta.” (do filme Yaaba, de Idrissa Ouedraogo, de Burkina Faso)


[1] Mais informações sobre a Política Nacional das Artes podem ser obtidas no site: http://culturadigital.br/pna/

[2] A data foi estabelecida pela ONU em memória do massacre de Shaperville, ocorrido em 1960, em Joanesburgo, África do Sul.

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Rui Moreira

Rui Moreira

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Bailarino, coreógrafo e investigador de culturas com trajetória profissional de mais de 30 anos, é um dos ícones da arte de dançar no Brasil. Atuou nas companhias: Cisne Negro, Balé da Cidade de São Paulo, Cia. SeráQuê?, Cia. Azanie (França), e no Grupo Corpo.  Coreografou diversos elencos dentre eles a Cisne Negro Cia de Dança, o Balé do Teatro Guaíra e a São Paulo Companhia de Dança. Sua formação artística mescla danças modernas, balé clássico, danças populares brasileiras e dança contemporânea africana. Foi agraciado com a “Medalha da Inconfidência” pelo governo do Estado de Minas Gerais, um merecido reconhecimento pela longa e profícua atuação artística e social em todo território do nacional e nos países onde levou os valores da arte e cultura do Brasil.