Crédito das Fotos: Ato Infinito da InSaio Cia de Arte. Foto de Hernandes de Oliveira.
“O mistério do teatro reside numa aparente contradição. Como uma vela, o teatro consome a si mesmo no próprio ato de criar a luz. Enquanto um quadro ou estátua possuem existência concreta uma vez terminado o ato de sua criação, um espetáculo teatral que termina desaparece imediatamente no passado.” (Margot Berthold – prefácio do livro História Mundial do Teatro)
Apresento-me: Sou Hernandes de Oliveira, um artista da cena. Iluminador. Aquele que acende o fogo ritual, que ilumina o interior da caverna para o ato sagrado. Sim, são palavras bonitas: Ritual, interior, sagrado… meu trabalho envolve belezas, encantamentos e mistérios.
Sabe-se pela história que durante milhares de anos, na lenta evolução da humanidade, a única fonte de luz disponível foi o fogo, forjado da fricção da madeira e da pedra. Durante o dia, aquele archote maior, o sol, a iluminar o planeta por ângulos variados: à direita, sol a pino, à esquerda, entre nuvens, por trás da montanha, entre folhas e galhos. Camadas diversas entre o mais claro dos dias e a noite escura. Durante milhares de anos aprendemos olhar, nos embrenhamos na luz, entediados nos imensos dias de calor ou frio extremos, olhamos as planícies infinitas ou a mata escura, vivenciamos a luz filtrada pelas árvores ou refletida nas águas. Depois criamos os edifícios, essa arte que inventamos para moldar a luz e abrigar a escuridão.
Recentemente, a apenas 200 anos, a energia elétrica nos abriu novas possibilidades de ver a luz, e no caso das artes cênicas, de manipular o tempo. Porque com a invenção do dimmer, esse pequeno e mágico recurso que permite acender e apagar a luz em velocidades e ritmos variados, a iluminação cênica se firmou como uma ferramenta indispensável da máquina teatral. Com o dimmer contamos histórias mais eficientemente, brincamos de criar existências e tempos.
Peça “A Emparedada da Rua Nova” solo de Eliana de Santana – E² Cia de Teatro e Dança – Foto de Hernandes de Oliveira.
Diz-se que a iluminação cênica se apoia em dois princípios fundamentais de construção: Espaço e Tempo. Eu, na minha compreensão e no meu atrevimento digo, porém, no palco o tempo tem prioridade sobre o espaço. O correto seria dizer que tempo e espaço se equilibram na construção da cena. Mas eu gostaria de falar hoje de algo que me instiga. O espaço surge na cena e desaparece. Essa é uma arte de desaparecimentos. Mesmo grandes cenários e figurinos exuberantes perdem toda sua graça fora do momento da apresentação. Toda vez que vou ao teatro penso: Hoje vou ver algo desaparecer. Todas as vezes é isso mesmo o que acontece, e boas peças são aquelas que melhor desaparecem. Talvez por isso eu não goste muito de visitar os artistas no camarim depois da apresentação. Desapareceu pô! Me deixa aproveitar isso…
Mas aqui cabem parênteses sobre esse assunto do desaparecimento. O que falo aqui não tem nada a ver com a falta de memória, com a não preservação da história. Toda iniciativa de manter viva a história de um artista, de um movimento, ou de uma escola de arte é importantíssimo e fundamental para a saúde de um povo. Dito isto, voltemos ao nosso assunto primordial.
Peça “1001 Platôs” da Taan Teatro Companhia – Foto de Hernandes de Oliveira.
É um fato inquestionável, a cena se faz no presente e, à parte os ensaios, o planejamento, a aritmética do palco, é neste momento presente (com o público ali e tudo o mais) que essa arte existe… Somente. Publicações, documentação em fotos e vídeos são importantes para a preservação da memória e valorização de tudo o que fazemos em cena. Mas é só no agora extasiante da cena que a arte do palco faz sentido. Ensaios, aulas, teorias e planejamentos são apenas o passo anterior ao grande ato de estar presente, nessa relação direta com o público.
A lembrança que fica em nós depois de assistirmos uma peça cênica vai se desfazendo com o tempo. Algumas duram muito, talvez toda a vida desaparecendo, vão ficando algumas manchas na memória, um gesto daquele bailarino, um silêncio longo, uma paisagem… até que um dia tudo se foi. E talvez não devamos classificar uma peça como boa só porque nos recordamos dela por mais tempo, um artista deve conseguir de seu público a atenção plena naquele momento, isso basta.
Antes de instruir, de protestar, de dizer verdades, de mentir, de convencer, de emocionar ou fazer rir, o ato cênico é, em essência, vivenciar algo coletivamente, agora. Trata-se de um gesto político, no sentido mais nobre possível desta palavra tão desgastada em tempos conturbados como o nosso. De minha parte, enquanto puder, estarei sempre lá para acender o fogo sagrado.
Escrevi esse pequeno texto há um ano atrás e nunca mostrei a ninguém – me parecia incompleto – e ainda me parece assim. Mas com a tragédia que estamos vivendo com o novo corona vírus eu sinto que esse tipo de reflexão é importante agora. Em tempos de ações virtuais e à distância, fico pensando em que medida isso nos afeta, nós que somos artistas do palco e da presença. De alguma forma estamos flertando com a morte, somos convidados a interromper nossas atividades por um tempo, mas de certo modo toda a nossa existência está em risco. E não há exatamente uma solução para isso. O tempo, ele de novo. O tempo vai dizer. |