A criança performer é seu corpo total, sua corporalidade; ela é móvel, plástica, modelável; polimorfa; seu repertório é rico em teatralidade e musicalidade, nos sentidos contemporâneos dos termos; ela improvisa, ela encarna emoções em seu corpo, ela é capaz de fazer-se partitura enquanto usufrui a paisagem sonora dos lugares em que está, etc. E sua capacidade de uso do espaço tornam presentes a noção de instalação, happening e performance, tão caras às artes visuais hoje.
Marina M. Machado
Há tempos tenho o desejo de escrever sobre a dança que vejo no movimento das crianças em situações cotidianas. Talvez seja como ver dança na movimentação das nuvens, das árvores ou dos gatos. Em alguns casos sim, pois nem pensam que estão dançando, embora a plasticidade e expressividade de seus movimentos deixem ver a potência de uma dança própria. Em outros, percebem que estão dançando, só não sabem muito bem com o que se parece sua dança de criança performer. Pois então, quando me convidaram para escrever aqui no Portal MUD, pensei em compartilhar este olhar em forma de crônicas que descrevessem algumas situações vividas por mim neste sentido. Esta primeira chamei de “A DANÇA DA ESPERA”.
Já faz alguns meses, precisei ir pessoalmente a uma agência bancária, coisa que tenho feito cada vez menos na vida. Detesto aquela situação de espera em que o tempo parece inutilmente desperdiçado, e quando, mesmo com a senha na mão, guardo um medo secreto de que meu número nunca seja chamado. Porém desta vez, apesar de esperar bem mais tempo do que eu havia imaginado, não senti a aflição nem a impaciência de sempre. Era de manhã e a agência estava relativamente vazia. Depois de passar pelo caixa, sem quase nenhuma fila, fui instruída a esperar para ser atendida com a mesma senha, nas mesas logo à frente. Sentada em uma das fileiras de cadeiras cinzas estofadas, escuto ao meu lado um som familiar de voz de criança brincando sozinha. Sabe aquela voz baixinha como se tivesse alguém gritando bem longe? Eram urros misturados a frases de ameaça, numa luta acompanhada de onomatopeias de golpes, esforço físico e explosões. Meu filho, quando era pequeno, brincava muito assim e cheguei até a filmar suas mãos em movimento se esticando e encolhendo das mais variadas formas, com intensidades e tempos precisamente diferentes conforme se dava a história imaginada por ele. Era exatamente como acontecia com o menino ao meu lado. Ele devia ter cerca de uns sete ou oito anos, pelo tamanho, e brincava com as mãos mexendo um copo plástico despedaçado - isso explicava o pedaço de plástico solitário sobre uma cadeira na espera do caixa que havia me chamado a atenção minutos antes… Agora estávamos na espera do atendimento, não éramos muitos, mas menos ainda eram os que atendiam, e assim o tempo se alargava. O espaço interno da agência era bem grande, com pouco mobiliário e uma distância boa entre as cadeiras de espera e as mesas de atendimento. O menino estava do meu lado esperando o pai, que se encontrava bem mais à frente numa das mesas. Nada melhor pra acabar com o tédio moroso da espera do que acompanhar uma criança brincando... Os pedaços do copo plástico eram os personagens que lutavam. Ele estava totalmente absorto na ação, mas seu olhar logo percebeu que estava sendo observado. Não consegui disfarçar meu interesse e nossos olhares se cruzaram em cumplicidade. Trocamos sorrisos. Pensei que talvez se sentisse constrangido e parasse de brincar, mesmo que eu tentasse não fixar o olhar nele, mas ao contrário disso, seu sorriso espontâneo junto à continuidade da narrativa de mãos e palavras mostraram que estava completamente à vontade. O conflito entre as mãos se intensificou, com os pedaços de copo plástico no meio, simulavam quedas e voos, se chocavam no ar e caíam sobre as pernas sentadas enquanto as tiras de plástico já amarrotadas se espalhavam e voltavam à cena intermitentemente. Com um enquadramento adequado, teríamos ali uma incrível videodança! Aos poucos, a história que acontecia apenas nas mãos ia envolvendo o corpo todo ainda sentado e a voz se elevou um pouco mais chegando a um clímax. Num dado momento, ouvi “A história acabou e foram felizes para sempre!”. E a história tinha de fato acabado. Após um instante de silêncio, o menino me olhou, sorriu, recolheu os pedaços de copo plástico caídos no chão e saiu correndo em direção ao lixo. O pai o chamou preocupado da mesa em que estava sendo atendido e ele respondeu alegre que estava indo beber água (provavelmente uma desculpa pra sair do lugar onde estava…). Parece que seu corpo agora precisava expandir após a contenção da cadeira, e aqueles movimentos que eram só das mãos foram literalmente incorporados. Na volta, não veio caminhando simplesmente, mas saltando e girando, atravessando o vazio como quem cortasse, desenhasse e desse sentido àquele pedaço de espaço desabitado. Minha observação altamente cinestésica percebia a delícia daquela experiência de liberdade no corpo. O desejo de ocupar com movimento esses espaços institucionais vazios também sempre acompanhou o meu corpo dançante. Afinal, pra que tanto espaço entre? E assim o menino continuava sua ocupação, preenchendo o tempo e o espaço da espera. Foi e voltou de perto do pai diversas vezes, só parou para observar atentamente um senhor sem pernas numa cadeira de rodas - “pausa dramática”- e continuou seu percurso. Em suas idas e vindas, nunca fazia o mesmo trajeto, como que mapeando o espaço por diferentes caminhos. Num dos lugares ainda não ocupado, interrompeu seu deslocamento, girou e fez movimentos “aleatórios” com os braços, movimentos sem propósito algum além do prazer do próprio movimento (alguma semelhança com o movimento dançado?). Uma senhora que passava também se deixou contagiar, fez em sua direção um gestual parecido, se comunicando com ele e saiu sorrindo. Isso tudo aconteceu silenciosamente naquele ambiente insípido e chato de banco. Não sei quantos outros espectadores assistiam a essa performance comigo. Ali, com certeza quase todos estariam preferencialmente em outro lugar, assim como eu se não tivesse algo tão interessante para apreciar... Em seguida, o menino correu em direção à rampa para cadeirantes e começou a brincar com o corrimão que tinha barras de ferro em duas alturas e um vão no meio. De repente, seu corpo inteiro atravessou lindamente aquele vão, de mais ou menos dois palmos. Sem nenhum esforço aparente, sua coluna flexível completou a torção que vinha desde a cabeça e ele passou como que por mágica sem tocar em nada! (Imagino que fosse este o desafio) Simples assim: no meio do caminho tinha um vão… Este foi o ápice da performance pra mim, desejei muito ter feito aquele movimento. Depois disso, minha senha apareceu no monitor e perdi o menino de vista. Nem lamentei os quase trinta minutos de espera!
Como artista professora, há 20 anos, continuo me encantando com a corporalidade das crianças e buscando sempre partir deste seu potencial performático, poético e pesquisador ao compor danças com elas.
Machado, Marina M. “Só rodapés: um glossário de trinta termos definidos na espiral de minha poética própria”. Rascunhos Uberlândia v.2 n.1 p.53-67 jan./jun. 2015.
Artista, professora e pesquisadora
Artista, professora e pesquisadora