MUSEU DA DANÇA

A caminhada e a dança do encantamento entre pimentas e princesas

Imagem: Quinta da Princesa, Amora, Seixal. Foto Maíra Santos | Terça, 02 de Maio de 2023 | por Maíra Santos |

O que é possível formar e criar na relação entre a prática performativa por meio da dança e da caminhada e suas relações com o espaço público, meio ambiente natural, social e político na construção de um mundo pós-pandêmico? Foi com essa pergunta que iniciei a presente pesquisa. Vem interessando pensar a caminhada e a dança na construção de um mundo pós-pandêmico. Da experiência com os pesquisadores envolvidos no projeto “Áfricas em dramas contemporâneos: experiências em etnografia performativa”, coordenado por Marta Denise da Rosa Jardim (EHPALA-Unifesp), e na própria colaboração que fiz na feitura do mesmo, surgiu a vontade de pensar também o periférico, a arte participativa que tece uma relação com a cidade, a caminhada como prática artística estética e a etnografia performativa. Assim articulei elementos do projeto coordenado por Marta, que acontece no Bairro dos Pimentas, na região leste da Grande São Paulo, pertencente ao município de Guarulhos com a Quinta da Princesa, bairro que se situa no Concelho do Seixal, Distrito de Setúbal, área metropolitana de Lisboa. Duas localizações geográficas específicas.  

Nesse mundo desigual a pandemia foi muito pior nos lugares mais pobres, nas periferias, nas periferias mais abandonadas. Dessa forma, não seria possível investigar nas periferias sem pensar na sua importância. É urgente reforçar pensamento, informação, redes de pesquisa e produção de conhecimento comprometida com a vida das pessoas nas periferias. O Brasil por sua vez é um dos países mais desiguais do mundo, enquanto Portugal encontra-se bem mais colocado. Os mais pobres, contudo, e sobretudo a população negra, são sempre moradores da periferia, os que mais sofrem e os que mais sofreram com a pandemia. Não seria por acaso o fato da maioria dos residentes do bairro Quinta da Princesa serem de origem africana, nomeadamente cabo-verdianos. Nos Pimentas, bairro muito heterogêneo, temos pessoas que chegaram de todas as partes do Brasil, entre os anos 60 e 70. O que se segue hoje é um número muito grande de “uberizados” e uma grande massa de trabalhadores sem trabalho.

A Quinta da Princesa e o Bairro dos Pimentas, mesmo com todas as sua diferenças e contrastes, seriam exemplos de periferias em que a caminhada nos exigiria uma improvisação corporal, não linear, a produção de experiências sensoriais que coagem o corpo a andar em estados não familiares, com possibilidades de perigo e materialidades inusitadas, mas também lugares com a possibilidade do encantamento como concebem os escritos de Jane Bennett (2001). Para Bennett o encantamento é marcado por estranhas combinações de efeitos somáticos que nos interrompe ou nos arranca do padrão sensório-psíquico-intelectual nos levando a notar novas cores, discernir detalhes ignorados, neste caso, por exemplo, ouvir sons escondidos pelas buzinas e carros. O “encantamento” pela caminhada.

As práticas da caminhada e sua relação com a cidade, dentro do universo artístico, foram fomentadas pelos Dadaístas, Surrealistas e Situacionistas na segunda metade do século XX. Desde então, as práticas de investigação espacial via o caminhar, algumas com inspiração Situacionista, como a teoria da deriva e a do flâneur há muito é considerada como oferecendo potencial para a prática estética crítica, criação de paisagens sonoras, performance art e intervenções. Os componentes multissensoriais que as caminhadas possam ter, como suas tatilidades mostraram forma de introduzir uma distância em relação às experiências cotidianas da cidade permitindo um olhar crítico mas também poético sobre ela.

E a dança? A dança e as práticas do corpo guiam os meus processos de trabalho na Quinta da Princesa. Toda terça nos encontramos para dançar. A minha investigação tem vindo a tecer aproximações e relações entre as práticas corporais da dança contemporânea, o pensamento coreográfico e a caminhada como arte. Outro dia revi uma aula da Mariana Muniz no Portal MUD e resolvi trazer para o grupo a parte de improvisar com um objeto auxiliar: as bolinhas de tênis. Assim acordamos e aguçamos a percepção das nossas abobadas das mãos, “harmonizamos o tônus” dos seus músculos intrínsecos, como explica Mariana. Partimos do contato com objeto para deslizar as escapulas, articular externo e púbis, cima e baixo, do envolvimento do corpo inteiro para o grupo todo.

A dança que é uma caminhada: as componentes multissensoriais que as caminhadas podem possuir, como a sua tactilidade, mostraram uma forma de introduzir distância em relação às experiências quotidianas da cidade, permitindo um olhar crítico, mas também poético, sobre ela. De Certeau (1984) já sugeria a invenção de um quotidiano e de um não quotidiano. Ao caminhar exploramos o ambiente urbano e o coreográfico dá forma à experiência sensorial de cada passo. A Quinta da Princesa é um mapa abstrato, nosso corpo um instrumento perceptivo e de desenho através do caminhar.

Desejamos que o material produzido possa promover diálogo e temas poéticos sobre aspectos importantes da comunidade e que possam servir de motes para a criação. Esse procedimento funcionará como uma especie de “imagem-pensamento” ou atos performativos, como uma espécie de brainstorming, para filtrar conceitos e possibilidades de temas para criação, pesquisa e soluções de problemas. O que advém do caminhar poderá inspirar possíveis intervenções no espaço público renegociando estruturas de poder social, político, cultural e ambiental.

Essa pesquisa reivindica o lugar da poesia, da dança, do cênico, que por sua vez devem ser considerados como estando envolvidos na produção do conhecimento. Poder, por fim, contribuir com reflexões sobre o potencial específico da Etnografia Performativa para o estudo de dilemas da contemporânea experiência do covid-19. Uma caminhada que vem sendo feita no caminho, e tecendo materiais para pensar a construção de cidades menos desiguais, mais inclusivas, novas identidades e histórias, como linhas de fuga dos eventos e narrativas conhecidas.


*Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Publicado por :



Maíra Santos

Professora, coreógrafa e bailarina.



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