Ser mãe e seguir dançando, uma tarefa (im)possível?

Crédito das Fotos: Capa do livro How not to exclude artists (and other parents)

Por muito tempo, as artistas da dança (e de outras linguagens) foram convencidas de que não poderiam ter a maternidade e uma carreira de sucesso. Não é o que o livro  “How not to exclude artists (and other parents)” de Hettie Judah, lançado em 2022 diz. Em sua escrita, a crítica e ativista argumenta que uma mudança de paradigma é necessária no mundo da arte para levar em conta as necessidades das mães artistas (e outros pais: pais artistas, pais que não se identificam com o termo ‘mãe’, e pais em outros setores do mundo da arte).

O livro baseia-se em entrevistas com artistas de várias nacionalidades que contam suas histórias de parentalidade e – continuidade – da carreira artística. Não tem o foco da dança, mas faz a gente pensar muito sobre esse mercado e a maternidade. Ao saber dessas histórias, a gente passa a pensar em modelos para o futuro, desde redes alternativas de apoio e modelos de residência, até complexos de estúdio com creches no local e espaços culturais com políticas voltadas para a família.

Algumas das artistas entrevistadas no livro, descrevem a maternidade como uma renovação de foco, uma nova direção em seu trabalho e até inspiração para uma mudança completa de carreira. Outros artistas contam que optaram por manter suas vidas domésticas e criativas compartilhadas. Tem outros que contam com apoios de parceiros (as, es) para conseguir continuar criando. 

De qualquer maneira, qualquer pessoa que tenha filhos é colocada em desvantagem no mundo da arte, tal como está estruturado atualmente. Isso não é diferente na dança, talvez ganhe até uma complexidade maior por ser uma arte do corpo, que é profundamente e diretamente impactada por uma gestação e pela amamentação.

Existem desafios reais em ser uma mãe artista que resultam de convenções dentro do próprio mundo da arte. Esses problemas são generalizados e encontrados desde a formação em faculdades ou escolas técnicas até as grandes cias de dança. São entraves estruturais que impedem não só as mães, mas todos os artistas que cuidam de crianças, e muitos profissionais do mundo da arte e da cultura também. Parece estranho falar disso em 2023, mas é algo que ainda acontece. Destaco aqui alguns trechos do livro (traduzidos por mim) que ilustram essas situações:

Quando descobri que estava grávida, duas das minhas apresentações internacionais foram canceladas”, lembra a artista performática Xie Rong. ‘Ambos os curadores eram mulheres, mas sem filhos. Ambos me enviaram um e-mail e disseram: “Boa sorte com a vida familiar, se você decidir se apresentar novamente no futuro, por favor, mantenha-me informado.” Fiquei chocada e muito chateada'”.

Supõe-se que uma mãe artista ficará incapacitada para trabalhar ou optará por parar, portanto, mesmo antes de ela dar à luz, as ofertas de trabalho – mesmo em projetos de longo prazo – começam a secar. Tal prática por parte de curadores e equipamentos culturais, reforça o medo de uma artista de que constituir família possa ter um impacto devastador em sua carreira. Também pode incentivá-la a esconder sua gravidez pelo maior tempo possível, para que não se veja marginalizada.

Como podemos diminuir essa desvantagem? Como podemos criar um campo de forças, saberes e trabalho que incluem as mães, pais e seus filhos? Como podemos falar sobre isso de maneira aberta – e não velada- para que cada vez mais mães se sintam incluídas nas formas de fazer e criar dança?

Não tenho essa resposta, mas esse texto se propõe como uma abertura para esse debate.

Silvia Federici em seus livros «O ponto zero da revolução» e «Calibã e a bruxa» nos ajuda a entender como o capitalismo se serviu do corpo da mulher para se constituir como sistema de exploração. Sem mulheres domesticadas, servis e «cuidadoras» o mundo não poderia ser como o conhecemos hoje: uma máquina de moer «algumas» gentes (incluindo aí além dos gêneros diversos, a racialização dos corpos). Nesse sistema de exclusões, encontra-se também o mercado das artes, e a dança.

De tantas maneiras as mães (e as mulheridades todas) são excluídas e /ou massacradas pela precariedade colocada nos modos de produção. Resistindo, desistindo e inventando jeitos de sustentação, ser artista e mãe hoje é uma tarefa (im)possível.

Listei aqui algumas formas de exclusão, para que a gente possa pensar sobre:

– Uma convocatória de residência artística que não tem apoio para a(s) criança(s) e um acompanhante, excluiu as mães.

– Um cachê que não inclui apoio para a(s) criança(s) e um acompanhante excluiu as mães.

– Uma curadoria pautada em quem vai nas aberturas e nas estreias e nas baladas excluiu as mães.

– Espaços de ensaio que não são amigáveis para crianças e bebês podem excluir as mães.

– Horários e jornadas de ensaios exaustivos, excluem as mães.

– Editais e cias que não preveem licença maternidade excluem as mães.

Essa lista é grande e convido as leitoras (es) seguirem completando… E, sabemos que a questão é mais complexa que isso, porque há uma série de outras questões que envolvem a maternidade numa sociedade patriarcal, machista e racista.

Importante ressaltar que outras violências e exclusões ficam evidentes quando falamos de mulheres negras e pobres. Também seria interessante desdobrar a discussão para países do “sul-global” como o Brasil, que de várias maneiras ainda não possuem uma política estruturada para as artes de maneira geral. Se ser artista no Brasil já é tarefa difícil, imaginemos o que é ser artista e mãe no Brasil?

Quantas artistas da dança que são mães você conhece?

Como elas estão sustentando o trabalho delas?

Quantas podem contar com uma rede de apoio paga para trabalhar – entendendo que a pesquisa é eixo fundamental da criação (além do descanso)?

E os pais?

Como é para eles isso?

O mundo (também das artes) só tem a ganhar quando incluir mães /pais nas formas de viver e produzir. Onde cabe uma mãe e sua cria, cabe todo mundo.

 

Livro: How Not to Exclude Artist Mothers (and Other Parents) by Hettie Judah. Páginas: 104. Editor: Lund Humphries Publishers Ltd. Co-editorr: Sotheby’s Institute of Art. Series: Hot Topics in the Art World. Data de publicação: 26th September 2022. ISBN: 9781848226128. Disponível pelo site da Amazon.


*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal MUD.

Marina Guzzo

Marina Guzzo

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Concentra suas criações na interface do corpo e da paisagem, misturando dança, performance e circo ao tensionar os limites da subjetividade nas cidades e na natureza. Desde 2011 tem como centro de sua pesquisa a crise climática e o papel do artista na produção de imaginários para travessias de um mundo em ruínas no Antropoceno. Trabalha em parcerias com equipamentos de saúde, cultura e assistência social pensando a arte como ação política que tece uma rede interespecífica complexa de pessoas, instituições, objetos, plantas, animais, fungos e paisagem. A artista tem pós-doutorado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP e mestrado e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. É Professora Associada da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte no Instituto Saúde e Sociedade.