Expressar-se é necessidade inerente do ser humano. Linguagens artísticas das mais diversas formas foram desenvolvidas ao longo da história na busca incessante por algo que defina, represente e afirme a identidade do homem. Segundo alguns autores a dança é a forma mais primitiva de auto expressão. Para Ted Shaw ela “é um contentamento primário, como a comida para quem tem fome, a água para quem tem sede e o sono para quem está cansado.” Em sua trajetória, a dança foi sendo sistematizada, até que se tornou uma arte cênica. Com a Renascença nasce o Balé da Corte que se transforma em Ballet Clássico e que por sua vez, inaugura a Dança Cênica Ocidental.
Quando François Delsarte começa a investigar a relação entre voz, movimento, sentimento e conclui que a intensidade do sentimento comanda a intensidade do gesto e que é principalmente o torso que mobiliza a manifestação das expressões, a Dança Cênica Ocidental passa por uma grande transformação. Mas adiante Isadora Duncan tira as sapatilhas das bailarinas clássicas devolvendo o contato dos pés com o chão. A bailarina sai de um lugar onírico e etéreo para voltar à terra. Isadora além de humanizar a figura dançante, instiga o perceber-se; perceber o eu-pele, eu-humano. Para ela é fundamental obedecer à lei da gravidade já que propõe uma dança que é a expressão de sua vida pessoal. Sim, é verdade que nossa anatomia foi projetada a fim de resistir à gravidade, porém é fato também que certas vezes ela nos vence. Concreta ou metaforicamente. A então nominada Dança Moderna começa a oferecer ao mundo uma estética mais visceral (se comparada ao Ballet Clássico). Não só os pés tocam o chão, mas todo o corpo, todo o ser vai ao chão. A queda, antes tão temida pelos bailarinos agora passa ser compreendida como uma necessidade. Uma constatação da realidade de que o movimento da vida nem sempre é ascendente. Às vezes caímos. E levantamos. E caímos. E levantamos. E caímos. E levantamos… Num movimento continuum.
Essa lição também nos foi dada por Maurice Berjart que no livro “Cartas a um jovem dançarino” responde perguntas de um bailarino em início de carreira que deseja aprender com o mestre os mistérios e segredos para se tornar um grande artista. Da serenidade de quem já alcançou a sabedoria e o conhecimento, Maurice explica, entre outras preciosidades, sobre a importância do chão. Deitar no chão, sentir o chão e consequentemente sentir-se; pois é no chão que se tem maior possibilidade de contato com o próprio corpo.
Prosseguindo no anseio de encontrar/criar uma dança que expresse a realidade do artista, a dança contemporânea aprofunda a relação entre dançarino e chão fazendo dele um partner. Mais do que oferecer base para o bailarino se perceber, o chão deixa de ser coadjuvante para ser protagonista. Torna-se mote para o movimento. Inspiração, apoio e poesia. É ponto de partida e chegada. É reconhecido como lugar de pertencimento. Chão como lugar de acolhimento.
Deitar no chão e permitir que a gravidade exerça sua função em todo o seu potencial pode ser um conforto para o corpo cansado da correria do dia a dia. Deixar que o chão acolha o peso do corpo, os pensamentos, a pulsação, pode ser um acalento para a alma. Entregar-se ao chão pode ser um oásis em meio à aridez da vida cotidiana. Melhor ainda se houver silêncio. Se houver tempo e espaço para ouvirmos a própria respiração, os batimentos cardíacos, os sentimentos e desejos mais profundos que acabam se escondendo nos recônditos da nossa mente, pois não damos a eles oportunidade de se manifestarem.
No ensino da Dança Contemporânea, ser ponte para ao aluno descobrir o chão como algo que vai muito além de um simples pavimento, é o meu maior prazer. São raras as pessoas que em uma primeira aula já se esparramam com familiaridade no chão. A grande maioria vai para ele com estranheza e até um certo desconforto. Mas também são raras as pessoas que depois de algum tempo fazendo aula já não chegam à sala e se entregam com grande prazer e confiança, no agora, parceiro. Descobrir e se descobrir no chão é um universo de sensações, percepções, aberturas e liberdade. Perder o medo de cair é tão fundamental para vida quanto para a dança. Fluir dançando no chão e com o chão foi pessoalmente uma das minhas melhores descobertas na dança. Foi tão intenso que depois de algum tempo de namoro com ele, precisei reaprender a dançar no nível alto, pois a vontade era sempre de permanecer entregue àquele que não falha. Aconteça o que acontecer, ele está ali pronto pra me acolher.
Tecnicamente, aprender a usar o chão como real apoio e suporte transforma o uso do nível alto. Entender que é preciso descer para subir, empurrar o chão para saltar, pressionar para ir mais alto, aperfeiçoa o equilíbrio e a técnica do dançarino. Também por proporcionar maior contato com o próprio corpo o dançarino desenvolve ainda mais sua consciência corporal, o que sabemos ser fundamental para o aprimoramento técnico e pessoal. Além disso, abandonar-se ao chão, ceder totalmente à ação da gravidade, nos leva para um estado profundo de relaxamento e auto percepção. De maneira inconsciente, quando estamos entregues ao solo é gerada em nós uma sensação de segurança. É como se ecoasse na mente o velho ditado: “se cair, do chão não passa”, então essa sensação nos impulsiona a perceber partes do corpo talvez nunca observadas e experimentar movimentos inusitados.
Antes da Dança Moderna a queda era o grande terror do bailarino. Cair em cena era um pesadelo. E me arrisco dizer que não só para o bailarino, mas para o ser humano. Gosto de acreditar que atualmente as pessoas já conquistaram uma postura mais flexível consigo e com o outro, permitindo e aceitando as quedas com mais naturalidade. Não sei se isso é real. Mas deveria ser. Gosto de pensar na queda como um passo de dança, no erro como uma oportunidade para o recomeço e no chão como um parceiro; de vida e de dança.
Referências Bibliográficas:
BOUCIER, Paul. História da Dança no ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SHAWN, Ted. Dobbiamo Danzare. Trad. Alessio Fabbro e Stefano Tomassini. Roma: Gremese, 2008.
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