Educação somática criativa – estrutura essencial, rituais e performance

As fronteiras entre a preparação corporal, a técnica e a criação no campo das artes da cena estão cada vez mais tênues na contemporaneidade. Isso reflete a busca de pessoas – artistas, pensadores, pesquisadores, que vivem a autonomia das artes como área de conhecimento ou como linguagem – por diversificados caminhos de desenvolvimento da qualidade da expressão artística e de metodologias que promovam diálogos com o mundo e também com suas próprias inquietações interiores.

Procurarei expor aqui alguns aspectos metodológicos encontrados, em especial, no pensamento de Laban/Bartenieff (educação somático-criativa) e nas dinâmicas rituais (das performances cênicas) justamente por estarem inseridos na categoria de integralidade corporal.

Exercito no campo semântico um alargamento do significado e do significante dos signos ‘rito’ e ‘ritual’.


Estrutura essencial

Pelo olhar antropológico podemos considerar essencial a estrutura fundamental do ser humano, estendida na forma pela qual a descrevemos brevemente – espírito; homem – todas as funções e obras específicas relacionadas com linguagem (formas de expressão), consciência moral, as ideias de justiça e de injustiça; o Estado, a administração; as funções representativas das artes; o mito; a religião e a ciência; a historicidade e a sociabilidade; observando o objeto dessas atividades, bem como seus resultados.  Por este prisma, a visão agostiniana afirma que o homem seria essencialmente alma e seu corpo invólucro desta.

Já o homem visto pelo prisma fisiológico, é essencialmente um conjunto de ossos, músculos, veias e artérias, gorduras e enzimas, terminações nervosas, recoberto por camadas de pele e cheio de liquido, dotado de capacidades motoras e reativas bastante impressionantes.  

A ampliação da consciência individual corporal objetiva, em muitos casos, se dá através da busca por práticas que despertem a estima sobre os fenômenos físicos relacionados à estruturação dos movimentos.   Não raro, ação ligada à saciação de curiosidades de forma especifica e intransferível.

As práticas corporais são sempre cheias de alternativas e possibilidades. Na busca da expansão de consciência mente corpo (holística), existem correntes de pensamento que indicam que qualquer encontro coletivo comece pela busca da autopercepção[1] pela respiração. Partindo daí, podem ser propostas atividades que alterem a organicidade da mecânica respiratória habitual o que em tese, promoverá uma espécie de equalização grupal provocando um estado de presença ampliado que promoverá transformações nas formas de absorção dos eventos em curso. Sempre levando em consideração que as individualidades têm focos diferenciados para experienciar o momento mesmo que estejam em grupo.

Segue abaixo a indicação de algumas propostas de práticas respiratórias que podem ser introdutórias de diversos processos criativos ou cognitivos:


Exercício 1: respiração abdominal

Deite-se ou fique em uma posição confortável. Inspire lentamente pelo nariz, segure o ar por 5 segundos e solte devagar pela boca todo o ar existente em seus pulmões. Ao inspirar eleve seu abdômen para cima. E ao expirar faça o movimento contrário.

Exercício 2: respiração alternada

Essa técnica é um Pranayama muito usado em aulas de yoga. Sente-se com a coluna ereta e os ombros relaxados. Utilize o dedo indicador para pressionar uma das narinas, obstruindo a entrada de ar e deixando a outra livre. Expire lenta e profundamente pelas duas narinas. Inspire silenciosamente pela narina esquerda, tapando a narina direita. Retenha o ar por 1 ou 2 segundos e expire lentamente pela narina direita. Quando os pulmões estiverem vazios, inspire imediatamente pela narina direita. Retenha o ar 1 ou 2 segundos e expire pela narina esquerda, lenta e silenciosamente. E assim sucessivamente.

Exercício 3: relaxamento rápido

Sente-se numa cadeira, na posição correta, para conseguir fazer o exercício de forma eficaz. Inspire e expire lenta e profundamente – isto pode ajudá-lo no processo de relaxamento. Solte e balance os braços e ombros. Deixe o maxilar e os músculos descansarem e solte os pés e tente relaxar as pernas. Esse exercício não ocupa muito tempo e irá ajudá-lo a descomprimir o excesso de tensão e a sentir-se revigorado e mais disposto.

Exercício 4 : relaxamento do pescoço e ombros

Faça esses movimentos conciliando inspiração quando estiver com a cabeça para cima e expiração quando estiver com a cabeça para baixo. Desenhe os números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 0 no ar com o nariz. Desenhe cada número e faça movimentos lentos. Tenha cuidado para não puxar pelos músculos tensos.

Na medida em que nos tornamos conscientes das relações que existem entre nosso corpo/mente e a ação, podemos modificar e tornar mais suficientes nossos padrões de percepção e ação criativa.


Rituais

Ritos e rituais são determinados costumes carregados de uma simbologia, de significado e importância para aqueles que os praticam. Normalmente, as palavras rito e ritual são utilizadas para se fazer referência a práticas religiosas, mas elas também se referem a práticas presentes em outras situações sociais.

É comum ouvirmos falar em rituais de iniciação, ritos de consagração, rituais de passagem, ritos de exclusão e outros.  Tomo como exemplo aqui os encontros presenciais em um curso de licenciatura em dança, as aulas – teórico/práticas – organizadas e objetivadas pela realização e reflexão sobre uma prática corporal. Observei que durante as atividades foram provocados por variados estímulos sensoriais, breves instantes de convergência de assimilação no coletivo. Esta convergência poderia provocar, ou provocou catarses de propriocepção[2] coletivas a partir de uma dilatação energética subjetiva que afetou direta ou indiretamente a sensibilidade estrutural dos presentes.

Por uma visada contextual, posso afirmar que se deu ali um processo ritual a partir de um rito composto pelos elementos: presença e atitude. Estes dois elementos despertaram estados corporais, compreensão e habilidade para se envolver com o processo de fusão das diferentes culturas expressadas na sala de aula. Em distintos níveis de aprofundamento.

E assim, sucessivamente, vai sendo desvelado nos indivíduos, os níveis de compromisso coletivo com a ação realizada naquele espaço de tempo e ambiente específico.

Ao se atribuir maior ou menor importância a ritos e rituais, as pessoas afirmam ou reafirmam seus valores, suas crenças e a ideologia dominante no seu grupo social, mesmo sem terem uma clara consciência disso.

Abordando esses processos e estudos constituídos de forma viva e integrados entre si, discorro a partir de minha compreensão (com auxilio das referências bibliográficas que citarei abaixo), sobre o significado implícito na expressão – educação somática criativa.  

Entende-se a Educação Somática como um campo interdisciplinar que se interessa pela consciência do corpo e seu movimento e que se propõe a uma descoberta pessoal de seus próprios movimentos, de suas próprias sensações. O termo soma advém do grego somatikos, que se refere à pessoa viva, consciente, corporal, “o corpo em sua totalidade” (Batson, 2009, p. 1). O termo foi reinterpretado por Thomas Hanna nos anos setenta para referir-se ao pertencimento ao corpo, experienciado e regulado internamente, em integração corpo-mente como parte do mesmo processo vivo (Hanna, 1976).

Por outro lado, o prisma ritualístico invoca a palavra soma do sânscrito, onde era tido como a bebida sagrada relatada no Rig Veda (Griffith, 1896, p. 368-420), com o significado de inspiração ou força motivadora – justamente a força motriz (Antrieb) (Mills, 2004, pp.673, 675), a que se referiu Laban para traçar sua teoria da Eukinetics – qualidades dinâmicas ou fatores de movimento – fluxo, espaço, peso e tempo – que se organizam ao longo de gradações entre duas polaridades.

Como os fatores de movimento, uma característica fundamental dos somas, enquanto processos vivos, é a dinâmica entre duas ou mais tendências ou polaridades, que se alternam num processo integrado de constante desafio e diferenciação (Hanna, 1976, p. 2-3).

Por exemplo, somas são processos de troca entre matéria e energia e estão sujeitos simultaneamente a homeostase[3] e equilíbrio, enquanto tendem também à mudança e desequilíbrio. Crescem numa alternância entre funções adaptativas analíticas e sintéticas rumo à diferenciação, assim como tendem à autonomia e independência de seu ambiente mesmo com o desejo de depender dele – tanto social quanto fisicamente. Assim, somas transformam o paradigma dualista em uma condição dinâmica da própria vida, em um constante processo de aprendizagem e crescimento.


Performance 

A aproximação da performance artística com o ritual ocorre principalmente em relação à criação processual, que se desdobra em uma cena de intensidades corporais e fluxos subjetivos. São processos temporais que intercalam círculo e devir, lembrança e esquecimento. No ritual, o corpo do performer encontra-se na intersecção de diversos componentes subjetivos que são re-articulados e re-significados nos eventos.

A cena e a performance constituem-se de intensidades e(m) fluxos. Esse pensamento advém das duas principais categorias criadas por Rudolf Laban – a “Eukinética” (qualidades dinâmicas) e a “Corêutica” (formas visuais criadas pelo movimento no e com o espaço) –, que associadas criam ou recriam um espaço dinâmico. Em realidade, esses fundamentos são completamente inseparáveis na performance. Isso torna impressionante número de combinações possíveis que, para “compreendê-los”, faz necessário para nós olhá-los de dois ângulos distintos. Aquele da forma e aquele da ênfase dinâmica (Laban, 1974, p.36).

A performance no contexto aqui abordado, interage como atitude de conexão com a  busca pelo corpo-memória, para a construção de um movimento, podendo ser caminho para que emerja uma possível expressão cênica trazendo os marcos da história de cada um.


Finalizando

A escolha da bibliografia de referência foi pensada com o objetivo de visitar, numa perspectiva panorâmica, diversas conceitualizações antropológicas do ritual. Nesse sentido, é também um percurso, condensado e ritualmente motivado, pela variedade de signos do gesto e pela experienciação coletiva do bio-movimento.


Bibliografia de pesquisa

BATSON, Glenna. Somatic Studies and Dance. International Association for Dance Medicine and Science, [s.l.] (17 Sep. 2009). Disponível em: . Acesso em: 20 mai. 2014.

HANNA, Thomas. The Field of Somatics. In: Somatics, vol. I, n.1, (Autumn 1976), pp.2-3.

GRIFFITH, Ralph Thomas Hotchkin. The Hymns of the Rigveda. 2nd ed. Kotagiri: [s.n.], 1896. Disponível em: . Accesso em: 25 set. 2014.

MILLS, Jon. Clarifications on Trieb: Freud’s Theory of Motivation Reinstated. In: Psychoanalytic Psychology, n.21, vol.4 (2000), pp. 673-677.

FERNANDES, Ciane – Princípios em movimento na pesquisa somático performativa  – Uma versão editada deste texto foi publicada como Princípios somático-performativos no ensino e pesquisa em criação. In: MARCEAU, Carole; SOARES, Luiz Cláudio Cajaíba (orgs.). Teatro na Escola. Reflexões sobre as Práticas Atuais: Brasil-Québec. Salvador: PPGAC/UFBA, 2013, pp. 105-115. Disponível em: file:///C:/Users/Rui/Desktop/Princi%CC%81pios%20em%20movimento%20na%20pesquisa%20soma%CC%81tico-performativa%20(Ciane%20Fernandes).pdf

Bibliografia principal

COHEN, Renato. Work in Progress na cena contemporânea. Criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CASTAÑEDA, Carlos – Passes Mágicos – Editora Nova Era , 2012

RENGEL, Lenira – Dicionário Laban – São Paulo: Annablume, 2003

MOMMENSOHN, Maria / Paulo Petrella – Reflexões Sobre Laban – O Mestre do Movimento – São Paulo – Summus – 2003.

CALAIS – GERMAIN – Blandine – Anatomia para o movimento: introdução a analise das técnicas corporais – São Paulo: Manole, 2010.

*Este artigo foi produzido no contexto do curso de licenciatura em dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – disciplina ESTUDO DO CORPO I – TURMA A (2018/1) – Professora: CARLA VENDRAMIN.

[1] Autopercepção: capacidade de se perceber no ambiente e no contexto.

[2]Propriocepção também denominada como cinestesia, é o termo utilizado para nomear a capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação, a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais, sem utilizar a visão.

[3] Na biologia, a homeostase é um processo de fundamental importância para a vida. Ela está relacionada à capacidade de manter a estabilidade das funções desempenhadas pelo organismo humano, ou seja, mantém o corpo em equilíbrio.

Rui Moreira

Rui Moreira

Ver Perfil

Bailarino, coreógrafo e investigador de culturas com trajetória profissional de mais de 30 anos, é um dos ícones da arte de dançar no Brasil. Atuou nas companhias: Cisne Negro, Balé da Cidade de São Paulo, Cia. SeráQuê?, Cia. Azanie (França), e no Grupo Corpo.  Coreografou diversos elencos dentre eles a Cisne Negro Cia de Dança, o Balé do Teatro Guaíra e a São Paulo Companhia de Dança. Sua formação artística mescla danças modernas, balé clássico, danças populares brasileiras e dança contemporânea africana. Foi agraciado com a “Medalha da Inconfidência” pelo governo do Estado de Minas Gerais, um merecido reconhecimento pela longa e profícua atuação artística e social em todo território do nacional e nos países onde levou os valores da arte e cultura do Brasil.