Entendendo a Dança como elemento da cultura corporal, notamos que quando se fala em dança, há um série de fatores que a envolvem nas mais diversas esferas, e é interessante considerarmos essa diversidade ao abordá-la no contexto educativo. Existem inúmeros conceitos, pré-conceitos, valores e tabus relacionados à dança que precisam ser considerados ao se realizar qualquer análise dessa linguagem. “Tanto corpo quanto dança ainda são cobertos por um mistério, um buraco negro que a grande maioria da população escolar ainda não conseguiu investigar, explorar, perceber, sentir, entender, criticar!” (MARQUES, 2012, p. 23). Dessa maneira, o significado do que vem a ser dança é bastante variável e muitos conceitos podem povoar o imaginário das pessoas em relação ao assunto.
Compartilho aqui uma experiência que tive como professora de dança em um curso livre para uma classe de sexto ano em uma escola estadual da cidade de São Paulo em 2016. A proposta era trabalhar a dança sob a perspectiva da expressão corporal, trazendo elementos da dança educativa (fatores do movimento, peso, fluência, espaço), jogos teatrais, rítmicos e improvisação. Muitos estudantes não compreendiam os motivos pelos quais o nome daquela aula era Dança, uma vez que não reconheciam “dança” nas atividades por mim propostas. Perguntei-lhes então o que, para eles, viria a ser “dança”. Entre as respostas, tivemos: movimento/ alegria / mexer-se numa música / mexer-se “com estilo” / funk/ hip hop/ forró / samba / balé / rock. Percebi que muitos associavam a dança a um estilo musical. Pedi que me dessem referências de músicas de que gostavam para desenvolvermos as atividades corporais com tais músicas. No entanto, o resultado foi que eu levava as músicas e eles queriam apenas ficar sentados escutando- as – e nem as escutavam inteiras. Ouviam o comecinho e já pediam para trocar. Além disso, as músicas de que uma parte dos alunos gostava não eram as mesmas que outros apreciavam e uns recusavam-se a ouvir as músicas dos colegas pertencentes a grupos diferentes. Os alunos que trouxeram funk recusavam-se a ouvir música pop, e quem trouxe forró se recusava a ouvir rap, e assim por diante.
Ficou evidente o quanto o gosto musical daqueles estudantes os posicionava no grupo (e por que não na sociedade?) a partir de rótulos por eles mesmos criados.
Com base nisso pensei em uma nova possibilidade para desenvolver o trabalho, sob outro viés: o dos sons. Propus ao grupo que dessem uma atenção especial ao sentido da audição: incentivei-os a em aula e em casa prestarem atenção aos sons e tomarem nota de todas as sonoridades que existem a seu redor. A seguir, a proposta foi apresentar corporalmente esses sons aos colegas. Com isso, foram estimulados a, além de “abrir os ouvidos”, corporificar a sensação dos sons. Para minha surpresa, gostaram muito e por várias semanas vinham descrever-me os novos sons descobertos. Chegamos juntos à conclusão de que sons têm tudo a ver com movimento. Logo, tudo a ver com dança. Fiz o trabalho evoluir, passando por percussão corporal e exercícios de olhos fechados. Com essa turma específica foi um caminho que encontrei e que trouxe resultados interessantes. Ao final do curso, conversamos sobre a experiência e muitos jovens se disseram surpreendidos com o trabalho, que consideraram diferente daquilo que supunham ser “aula de dança”- mas descobriram uma nova dança. Os conceitos e pré-conceitos das danças que esses jovens tinham fazem parte de sua cultura corporal.
A cultura corporal envolve repertórios relativos aos significados que as práticas corporais têm. E esses significados vão desde “as regras da amarelinha até o desenho tático do futebol, passando pelas técnicas do balé, a história do judô e os nomes dos aparelhos de ginástica. Também compõem esse repertório a noção do esporte como meio de ascenção social das camadas desprivilegiadas, a utilização da ginástica para aquisição de determinada estética corporal, a brincadeira como atividade restrita às crianças, entre outros tantos significados em circulação”. (NEIRA, 2014, p. 16)
Hoje no Brasil, a escola de um modo geral propõe a reprodução da cultura hegemônica – branca, ocidental, heterossexual. O currículo escolar ainda privilegia os saberes dessa cultura. NEIRA (2014), sobre educação física escolar, afirma que “os estudantes das camadas populares aprendem desde cedo que o saber que conta é aquele que provém da cultura dominante: esportes hegemônicos, brincadeiras europeias, as danças aceitas, o judô, o xadrez, e principalmente as atividades corporais inventadas para ensinar conteúdos escolares”.
Isso porque a escola é um microcosmo que responde às demandas de um macrocosmo que é essa sociedade, que tem como referência a cultura hegemônica. Se a escola partir desse princípio, concluímos que ao invés de diminuir as desigualdades acaba legitimando-as. Nas artes – e por conseguinte na dança e na educação corporal – há uma imposição pedagógica do pensamento ligado à lógica das classes dominantes. A maneira como se ensina é diretamente relacionada ao resultado que se terá. A escola tem um projeto de corpo coerente com o projeto de cidadão que pretende formar. Se a cultura dominante diz que é preciso que os corpos infantis na escola sejam submissos, rígidos e adestrados, treinam-se as crianças para ficarem sentadas, andarem em fila, e nada questionarem.
Da mesma maneira, a mídia diz que os corpos devem ser magros mas fortes. Assim, as academias e escolas de dança fabricantes de corpos buscam formas de adequar suas atividades a tais exigências. A educação tende a obedecer às regras social e culturalmente impostas. Na escola, os métodos pedagógicos majoritariamente utilizados são aqueles que buscam como objetivo final uma uniformização dos corpos, ao invés de corpos e gestos livres, conscientes e criativos, reafirmando os valores já estabelecidos em uma sociedade desigual que não tem desejo de mudar tal condição. Esse ponto de vista faz parte da cultura corporal vigente. As ideias e ideais que se tem de corpo também fazem parte daquilo que chamamos de cultura corporal. Cabe à escola – e aqui incluo escola formal ou escola de dança – decidir se será um espaço para reafirmar e legitimar a cultura e os dogmas dominantes ou, ao contrário, possibilitar a exposição das múltiplas visões de mundo e, a partir disso, o diálogo transformador entre elas, resultando em ressignificações.
Você está buscando novas metodologias de ensino da dança? No Laboratório da Dança você acessa aulas online de renomados mestres, que trazem novos olhares e tendências do ensino! Cadastre-se aqui.
Referências bibliográficas:
MARQUES, Isabel. Oito Razões para se ensinar dança na escola in ICLE, Gilberto (org) Pedagogia da Arte: entre-lugares da escola. 1a. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.
NEIRA, Marcos Garcia. Práticas corporais: Brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. São Paulo: Melhoramentos, 2014.