Sou artista da dança com formação em duas grandes áreas humanas, a dança e a psicologia. Isso já diz muito do meu imenso interesse em estar com pessoas e propiciar a ampliação da saúde e auto-conhecimento pelo corpo em movimento no ensino-aprendizagem. Duas palavras são fundamentais para descrever minha trajetória como educadora do movimento: experiência e pesquisa. Entendo a prática profissional como um estado permanente de investigação, escuta e estudo. No momento em que acreditamos que existem fórmulas prontas, o processo educacional e criativo finda.
Nesta constante curiosidade, fui presenteada com a oportunidade de atuar com diferentes públicos e faixas etárias: crianças, adolescentes, adultos, terceira idade, pessoas com deficiência física, iniciantes, profissionais, projetos públicos e privados. Diante da diversidade, pude vivenciar e saber profundamente que todo corpo dança, entendo-o sempre como singular. E que o que se nomeia como “limite” são crenças sociais e parâmetros estéticos que precisam ser amplamente revisados. Mas atenção: afirmar que todo corpo dança, não significa olhar todos como iguais. Ao contrário, a parspectiva da singularidade implica em tomar consciência e respeitar o que é possível a cada um.
Desde 2015 venho desenvolvendo trabalhos com dança, movimento e criação para pessoas maduras, acima de 60 anos. E então, unindo minha formação em balé e a relação da dança com a educação somática, em 2019 dei início ao projeto de balé para terceira idade “Ainda é tempo”. Tal projeto consiste em aulas de balé para quem nunca fez antes ou então que já tenha realizado em algum momento da vida e queira retomar. Associando os princípios da técnica do balé a fundamentos da consciência do corpo, proponho um aprendizado cuidadoso e sensível, que respeite os limites de cada aluna/o.
Neste artigo, proponho discutir a respeito da dança para terceira idade. Trarei inicialmente alguns dados e informações sobre a faixa etária em questão, num convite de aprofundamento do nosso olhar, para então partilhar elementos que venho pesquisando e desenvolvendo junto ao projeto “Ainda é tempo”.
QUEM É IDOSO?
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) e demais órgãos que regulamentam políticas de saúde pública, idosa é toda pessoa com mais de 60 anos. Dados demográficos indicam que a população nesta faixa etária vêm aumentando em vários países (inclusive o Brasil) nas últimas décadas, assim como a expectativa média de vida.
Um dado que merece destaque é que este é o segmento específico da população que vem crescendo mais rapidamente em comparação a outras faixas etárias. Isso significa que aquela imagem comum de uma pirâmide para representar o desenvolvimento populacional (com pessoas mais novas, em maior quantidade, na base e as mais velhas, em menor quantidade, no topo) tende a ser substituída por uma imagem mais cilíndrica (na qual as pessoas mais velhas são quantitativamente quase iguais a faixa etária adulta / jovem).
Por fim, outro dado quantitativo importante é a constatação de que, dentro da terceira idade, também se observa um crescimento do número de pessoas mais velhas. A faixa dos 80 anos, por exemplo, é o segmento da população que mais vem aumentando.
Adentrando no âmbito das características qualitativas desta faixa etária, porém, vamos percebendo que estamos diante de processo complexo, que não envolve apenas delimitar uma idade cronológica. Em primeiro lugar, precisamos compreender a velhice como um fenômeno que deve ser visto considerando condições sócio-históricas. Ser idoso agora, no início do séc. XXI, é muito diferente do que em qualquer outro momento histórico da humanidade.
Em segundo lugar, é necessário ponderar que não estamos falando de um grupo homogêneo, e que as características biológicas são interseccionadas por variações como: cultura, gênero, acesso a sistemas de saúde e serviço social, ambiente físico, ambiente social, comportamentos pessoais, fatores econômicos. Sendo assim, vamos encontrar variações substanciais relacionadas ao estado de saúde, participação e níveis de independência entre pessoas mais velhas que possuem a mesma idade, mas que vivem em contextos distintos. Por este motivo, querer estabelecer definições baseadas somente na idade cronológica pode ser simplista e até mesmo discriminatório, quando estamos abordando a saúde e o bem estar na terceira idade.
Diante desta complexidade, podemos enfatizar: viver mais tempo, nem sempre significa viver com qualidade de vida. Há uma série de hábitos e cuidados a médio e longo prazo que precisam ser cultivados (e disponibilizados, em termos de políticas públicas, no âmbito da saúde coletiva) para que esta faixa etária possa desfrutar de um bom viver.
A OMS adotou o termo “envelhecimento ativo” para definir este processo como experiência positiva:
Envelhecimento ativo é o processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas. (World Health Organization)
É pertinente examinar como esta terminologia traz uma noção mais abrangente do que “envelhecimento saudável”. Nos permite reconhecer que o bem viver ultrapassa o campo da saúde física, ampliando para o reconhecimento dos direitos humanos das pessoas mais velhas. Esta nomenclatura também nos sucita a refletir sobre o envelhecimento como algo social, não individual. Ou seja, não são medidas que a pessoa mais velha deve tomar por conta própria, mas sim um modo de compreendermos socialmente o envelhecimento, como etapa participativa da vida, com descobertas, realizações, desafios.
Manter-se “ativo”, nesta perspectiva ampliada, é portanto fundamental quando queremos abordar a qualidade de vida para terceira idade. A partir do meu olhar como educadora do movimento e psicóloga, pontuo a importância de “estar em movimento”, desde a esfera física (praticar exercícios de forma geral), como na esfera mental, emocional e espiritual. Isso significa fazer atividades que gosta, relacionar-se com pessoas, trabalhar, ler, aprender coisas novas, ter propósitos e metas a alcançar, engajar-se em causas coletivas e tudo o mais que estiver ao seu alcance e vontade. Estar em movimento em todas as esferas da vida possibilita que continuemos a exercer e desenvolver nossas capacidades, bem como ajuda a prevenir e retardar incapacidades e doenças crônicas.
A DANÇA
A dança é uma área do conhecimento humano que tem como elemento prioritário o corpo em movimento. Partindo do pressuposto do ser humano como totalidade, podemos entender que corpo, mente, emoção e espírito manifestam-se integradamente.
Sendo assim, a dança favorece não apenas o desenvolvimento motor, mas também o auto-conhecimento, a socialização, habilidades cognitivas, memória, noção espacial, relação com ritmo, o contato com a sensibilidade artística, etc. Acredito ser fundamental destacar que dançar não é um mero exercício mecânico e repetitivo, voltado para corpos dotados de capacidades específicas. A dança é uma linguagem expressiva disponível para ser vivenciada e apreciada por qualquer pessoa que assim deseje. Por estimular o desenvolvimento integral do ser, é grande aliada na promoção de saúde e bem estar físico, mental e social.
Mas então, quais seriam as características específicas da dança para idosos? Se retomarmos todos os fatores já mencionados, que interseccionam a terceira idade como fenômeno biológico e social, podemos imaginar que não existem informações unívocas. Portanto, vejo aqui a necessidade de fazermos um giro de 180º no nosso olhar: ao invés de buscar especificidades na dança para terceira idade, o que se coloca como prioridade é voltarmos nosso olhar para o outro lado da relação, ou seja, para a postura do educador.
Uma vez que não há verdade absoluta, cabe ao educador da dança examinar cuidadosamente o contexto onde está inserido. É necessário também que possua, em sua formação, domínio didático-pedagógico para elaborar planos de ensino com metodologias que abarquem diferentes realidades.
De minha experiência prática, posso afirmar que meu primeiro (e constante) movimento é escutar, observar e acolher. Escutar não apenas com os ouvidos, mas ter uma prontidão e aptidão para ver, sentir e perceber o ambiente e quem está à minha frente. Escutar significa também desejar escutar, estar interessada em compreender essa realidade em questão. Implica saber que não sou a dona da verdade, para genuinamente receber o conhecimento que chega até mim.
Além disso, é fundamental conhecer, mesmo que brevemente, o histórico de movimento das pessoas. Saber se há alguma restrição de mobilidade, enfermidades, diagnóstico médico, tratamento em andamento. É dessa escuta e reconhecimento inicial que nascerão os contornos da proposta de aula, do que pode ser feito e o que não vai ser adequado. Com o que temos até aqui, já podemos ver: estamos em relação. O que vamos propor depende de com quem estamos.
A terceira idade é uma faixa etária que já viveu pelo menos 60 anos de vida – mais tempo que eu, e talvez mais tempo do que você, que faz essa leitura agora. Uma pessoa idosa andou mais sobre os seus pés, sorriu mais vezes, fez mais uso de seus braços para abraçar, sentiu mais vezes o cheiro da chuva, comemorou mais aniversários. O privilégio de viver mais implica também reconhecer que as estruturas corporais terão mais desgaste, pelo simples fato de existirem há mais tempo. Imagine duas casas exatamente iguais, uma construída há 70 anos atrás e outra recém erguida: o que está em questão não é uma ser melhor ou pior do que outra; mas certamente a linearidade do tempo já percorrido implicará na necessidade de alguns cuidados, reorganizações, por um desgaste natural. Tais demandas dependerão diretamente de como cuidamos diariamente, ao longo de todo esse período, da nossa casa-corpo.
Isso não significa que uma pessoa idosa não possa fazer determinados movimentos, como se houvesse um a priori do que é fazer, numa polaridade simplificada de fazer x não fazer. Essa operação dicotômica está baseada numa lógica de eficiência e máxima performance que precisa ser revista em nós, educadores, em primeiro lugar – para todas as faixas etárias, inclusive.
Ao invés disso, podemos pensar em gradações, em graus que geram modos de fazer um pouco mais e um pouco menos. Modos estes que implicam reconhecer o singular – o possível – de cada pessoa. Como educadores, não faz sentido querermos o desenvolvimento em série, como se todo mundo fosse igual. Para aprimorar nossa capacidade de ver o singular, é fundamental que tenhamos um aprofundado conhecimento em anatomia e cinesiologia, para reconhecer a mobilidade e funcionamento de diferentes estruturas ósseo-articulares, músculos, tendões e uma capacidade de leitura e compreensão das organizações posturais de cada aluna/o
Sem essa capacidade de leitura, corremos o risco de levar atividades excessivas, que sobrecarregam a aluna/o – no binômio fazer. Ou, ao contrário, ficarmos exageradamente cuidadosas, até mesmo com medo de sermos propositivas, com uma aula sem desafios psicomotores – no não fazer. Para isso, trago como exemplo o feedback de uma aluna de 70 anos, que uma vez disse: “é legal que a Suzana não trata a gente como velho”, referindo-se à tendência a desconsiderar a capacidade de um idoso em responder a um novo estímulo.
Com o domínio e conhecimento em anatomia e cinesiologia, temos também a possibilidade de propor exercícios não apenas como movimentos a serem executados, mas propor conhecer e perceber o que acontece no seu corpo ao realizá-los. Ao invés de executar, podemos trocar por experimentar, ou seja, um fazer que envolve também o sentir. Isso propõe um caminho de autonomia ao aluno/a, de conhecer a si mesmo, compreender os seus limites, saber dar atenção a dores que aparecem, nomear partes do corpo, entender os movimentos que está realizando. Em outras palavras, uma metodologia que preconiza auto-conhecimento, experimentação e calma, o que é muito mais producente do que simplesmente solicitar a realização de movimentos a serem copiados. Assim, o aluno/a se torna mestre de si.
Tendo conhecimento do movimento de forma mais integral, fica fácil reconhecer que o corpo que dança é também o corpo que vive fora da sala de aula. Então, podemos fazer um trânsito saudável entre o aprendizado de uma técnica de dança – como no caso do projeto Ainda é Tempo, envolvendo o balé – para estimular aspectos do corpo que são importantes para o bem viver no dia a dia. Fortalecimento do tônus, equilíbrio, alongamento, percepção e uso de apoios, organização do eixo e da postura são alguns do elementos que podemos citar, e que trazem bem estar imediato na integração corpo-mente.
Por fim, pontuo que o trabalho com terceira idade é um convite a um aprofundamento e pesquisa constante. Enquanto postura metodológica, não há fórmula fechada, mas sim uma postura de escuta, observação, acompanhamento e intuição. Portanto, não faz sentido adotar uma posição simplista de adaptar para fazer menos. Faz-se necessário em primeiro lugar estimular a si, como educador/a, no exercício de olhar que vê o singular como belo, não como adaptação e conseção, revendo seus padrões estéticos e éticos. Só assim podemos de fato propor o prazer de se mover e estar vivo/a.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
MONTEIRO, Zelia. Considerações sobre o ensino do balé. Disponível em: https://portalmud.com.br/portal/ler/consideracoes-sobre-o-ensino-do-bale. Acesso em: 10/01/2022
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Brasilia: Organização Pan-Americana de Saúde, 2005. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/envelhecimento_ativo.pdf. Acesso em: 16/01/2022