Homo Détritus" do artista Wilfried N'Sondé (2012)
A palavra sustentabilidade está em voga. Metas, programas e projetos estão sendo pensados a todo vapor para “adiar o fim do mundo”. Nesse contexto, um termo que carrega tantos significados, também expressa maneiras de refletir sobre como a dança pode ser uma grande aliada na construção de novas narrativas acerca das relações entre o que pode ser sustentável em nossa biodiversidade e em nossos meios culturais.
A dança tem um papel importante na discussão da sustentabilidade e na promoção de práticas que podem melhorar o meio em que vivemos. O dossiê: Environmental Sustainability in Contemporary Dance: Emerging Issues, Practices and Recommendations, publicado em 2022 pela European Dancehouse Network (EDN), apresenta algumas ideias de como a dança pode ser aliada das práticas sustentáveis:
– Contribuindo para aumentar a conscientização sobre a urgência da crise ambiental;
– Experimentando estratégias para a gestão sustentável dos recursos de espaços urbanos e rurais;
– Construindo novos imaginários e narrativas para o futuro;
Assim, a sustentabilidade pode ser o prisma de projetos culturais, abrangendo desde temas e ações com a comunidade local até uma gestão sustentável e a conscientização ambiental. Porém, antes de nos aprofundarmos nessas possibilidades, gostaria de enfatizar o último tópico e refletir sobre a construção de novos imaginários e narrativas para o futuro.
Construir narrativas na dança, especialmente na linguagem contemporânea, é a oportunidade de construir maneiras sensíveis e táteis, baseadas em novas lógicas: o gesto, a cenografia, a relação entre os corpos em cena, a luz cênica e os mais diversos elementos reunidos nessa alquimia revelam uma dramaturgia em construção. Dessa maneira, podemos interligar a linguagem da dança contemporânea como um fator primordial para o repovoamento do ecossistema e a biodiversidade existencial, por meio da forma como lidamos, movimentamos e nos relacionamos com nossos micro e macrocosmos.
Nesse ponto, gostaria de chamar a atenção para o artivismo, termo que já existe desde a década de 1960 e que coloca a arte como uma ação que questiona de forma interventiva as relações de poder. Assim, o artivismo se molda como práticas multidisciplinares de linguagens artísticas que denunciam, negam e questionam a “realidade” das coisas. Mas que realidade é essa?
A arte é a possibilidade de reinventar realidades, não pela negação da vigente, mas pelo questionamento da vigência de uma única realidade. Reinventar e questionar a partir do nosso meio e formular questões como: essa realidade em que estamos imersos abre a possibilidade de um coletivo florescer e de um novo ecossistema se construir de maneira justa, sustentável, harmônica e sensível?
Outro termo que gosto muito de referenciar são os “cuidados de si”, práticas e disciplinas ontológicas que investigam o sujeito. Nas palavras do Dr. Cassiano Sydow Quilici: “Elas indicam um movimento de ruptura com o modo de existência mediano, constituindo-se como via de acesso a uma experiência transfiguradora do sujeito. Tudo principia com o despertar de um desassossego em relação à nossa condição ordinária” (Quilici, 2018,p.3). A condição ordinária que podemos chamar de “realidade” pode ser transfigurada na arte, abrindo espaço não apenas para a lógica de outros ecossistemas, mas também para a nossa sensibilidade.
Os “cuidados de si”, assim como o artivismo, tornam-se práticas artísticas que desmontam e remontam em tempo real as percepções singulares, convidando as comunidades a repensarem seus microcosmos. Neste ponto, a sustentabilidade é o conceito fundamental para conectar esse encontro: práticas transformadoras que rompem com a banalidade da destruição de nosso ecossistema e abrem a possibilidade de pensar novas organizações. Mas como a dança pode construir novos ecossistemas?
2. Repovoar o ecossistema e biodiversidade do seu microcosmo
Voltando ao dossiê da EDN mencionado acima, ao abordar a importância da narrativa na dimensão humana para a compreensão de histórias e pontos de vista, surge na dança uma possibilidade fascinante. Nas palavras de Anna Halprin: “a palavra é apenas um símbolo, mas o movimento incorpora tudo” (EDN, 2022, P.15).
Assim, o dossiê aponta modos que a dança pode movimentar temas e questões:
– Impacto dos modelos de produção e consumo na preservação do planeta
– Valorização da natureza
– Reconhecimento das visões de mundo indígenas e do conhecimento tradicional ligados à preservação do planeta
– Promoção de práticas de ‘cuidado’ ou ‘cuidado radical’ em relação a outros humanos, outras espécies e ao planeta, desafiando os valores do capitalismo
– Fomento a estilos de vida mais equilibrados
– Perspectivas não antropocêntricas (ou seja, aquelas práticas que concedem valor moral a animais, plantas ou paisagens)
– Experiências ligadas à ‘restauração ecológica’ (rewilding) de áreas específicas, isto é, trazer de volta elementos naturais onde estavam ausentes ou enfraquecidos
Quando escrevo sobre ecossistema, digo também à nossa comunidade local, dentro do micro e macro que se relacionam e democratizam o acesso à cultura. Neste meio em que estamos inseridos, repensamos as atitudes,questionamos padrões e/ou contribuímos para a formação de um ambiente mais sustentável?
Repovoar sensivelmente e construir novas narrativas para além do antropoceno (vale a leitura do texto: A dança do amanhã), é restaurar uma ordem mais natural das coisas: a natureza e a conexão dentro e fora dos centros urbanos.
3.Como podemos organizar projetos artísticos engajado com a narrativa atrelada a sustentabilidade:
O dossiê apresenta algumas práticas, tanto de produção quanto em projetos artísticos, que podem contribuir para a promoção da sustentabilidade:
– Oferecendo residências artísticas em paisagens naturais, proporcionando oportunidades de devolver algo à natureza.
– Integrando a sustentabilidade ambiental em programas regulares, festivais ou outros eventos.Alguns eventos de dança que integraram a sustentabilidade ambiental como tema central em suas programações.
– Apresentando trabalhos em espaços naturais e ao ar livre, incentivando apresentações site-specific(específicas para o local). Estas atividades podem oferecer boas oportunidades para alcançar públicos que normalmente não visitariam um local de dança.
– Desenvolvendo formatos específicos para discutir a sustentabilidade, como palestras, workshops, seminários ou caminhadas ao ar livre.
– Fomentando colaborações entre artistas e profissionais de outras áreas (por exemplo, biólogos, jardineiros, urbanistas, inovadores, ambientalistas, etc.).
– Enfatizando narrativas em torno da sustentabilidade incorporadas nas instalações das casas de dança.Estas estão frequentemente sediadas em espaços reaproveitados (antigas fábricas, armazéns, estúdios de TV, etc.) e ilustram abordagens sustentáveis.
Outras possibilidades incluem instaurar o ciclo da sustentabilidade nos projetos, priorizando o reuso, a redução e a manutenção da vida útil de materiais cenográficos, figurinos e em outras etapas de projeto, como a mobilidade. E por fim, gostaria de destacar uma citação do relatório da EDN:
“Desenvolver ecossistemas culturais baseados na colaboração e partilha em vez da competição; valorizar elementos do ecossistema da dança que contribuem para o seu desenvolvimento, sustentabilidade e regeneração, mesmo que se encontrem nas suas margens; e procurar métodos de medição e de relatórios que se concentrem menos no número de novas obras criadas e noutros indicadores quantitativos, e que, em vez disso, levem em conta a criação de relações sustentáveis com as comunidades locais, novos processos de aprendizagem e outras coisas intangíveis” (EDN, 2022, p.19).
A construção de práticas que entrelaçam vida e arte, que engajam a comunidade local e o palco, que unem o ensaio com atividades ecológicas,e o ativismo com a construção de linguagens artísticas, além de métodos sustentáveis para os projetos, nos ajuda a analisar o nosso ambiente, viabilizar comunidades e melhorar o nosso meio. Além disso, fomenta redes artísticas, constrói realidades diversas que acolhem, nutrem e revitalizam não só a terra e as nascentes, mas também as nossas sensibilidades.
A sustentabilidade está em voga e podemos pegar esse gancho para construir nossas próprias metas, questionar o status quo e edificar nossas comunidades artísticas ecos sustentáveis .
Gabriel Paleari