Há quase 40 anos ensino balé para crianças, adolescentes e adultos, através de uma proposta pedagógica fundamentada na percepção do corpo como principal processo para aquisição da técnica.
Durante esses anos, tenho observado que os processos pedagógicos e as metodologias praticadas não são eficazes quando se trata de despertar ou favorecer a criatividade daqueles que praticam esta técnica. Em geral ocorre o contrário: ao praticar muito balé o corpo vai perdendo a espontaneidade porque deixa de estabelecer processos relacionais entre o sujeito e o treinamento que pratica. O balé passa a ser entendido como reprodução de passos, com um modelo de corpo e de comportamento a ser seguido sem questionamentos. E assim, criatividade e técnica deixam de estar interligadas no artista em formação, que vai perdendo aos poucos sua autonomia em relação à linguagem da dança.
A aquisição de uma técnica deve estar sempre em diálogo com o sujeito, que é aquele que a apreende, aperfeiçoa ou a aplica. A partir desse ponto de vista a técnica do balé não deveria estar associada – e comumente está – a um treinamento rígido, imposto ao corpo. Para que seja apropriada por uma criança, um adolescente ou um adulto é importante que o aluno tenha primeiramente a oportunidade de sentir, perceber e conhecer seu corpo e seu funcionamento, para que possa encontrar aos poucos a postura e a coordenação dos movimentos exigidos pelo balé. Por isso é importante que a técnica seja introduzida respeitando o processo individual e à constituição física de cada aluno, suas possibilidades e limitações.
Mesmo conhecendo muito bem a linguagem do balé, é muito comum que professores desta técnica não tenham o conhecimento de anatomia e cinesiologia necessário para seu ensino. Sua atenção está mais voltada ao “quê” fazer, ao invés de apoiarem suas orientações no “como” fazer os movimentos.
Essa deficiência de formação pode trazer problemas aos alunos, muitas vezes irreversíveis, em seu desenvolvimento técnico futuro. Não são apenas as lesões, mas principalmente o fato de não adquirirem a coordenação correta para executar os movimentos de maior complexidade que o balé exige em sua progressão. Além disso, ao fixar posturas que forçam os músculos em demasia, os professores não ajudam o futuro bailarino a desenvolver disponibilidade corporal para lidar com outras linguagens de dança.
Por isso é importante que o professor saiba como promover um trânsito coerente entre os códigos do balé e a percepção – sensível – da organização de seus movimentos. Tal articulação deve acontecer em primeiro lugar, no corpo do professor, para que ele desenvolva estratégias a serem compartilhadas com os alunos que serão então, capazes de experenciar essas relações.
É importante priorizar como finalidade de uma aula a maneira como o aluno realiza os movimentos e não apenas as sequências de passos e saber como explorar os exercícios da barra a fim de que o aluno consiga encontrar o alinhamento ósseo, o uso das alavancas e das musculaturas corretas para a realização dos movimentos que serão feitos no centro.
Deste modo o balé é aprendido e aperfeiçoado não apenas no sentido da codificação de seus movimentos – específicos de uma época e tradição – mas, sobretudo nos procedimentos corporais necessários à sua execução. Possibilita que o aluno conheça seus padrões posturais inadequados aos movimentos do balé e pode assim, promover um melhor alinhamento ósseo-fáscio-muscular, relaxando tensões excessivas, alongando tecidos encurtados e fortalecendo musculaturas fracas, evitando danos às articulações.
O resultado é a aquisição de uma técnica apurada, com linhas claras e movimentos precisos sem afetação, onde a disponibilidade e o prazer de dançar permanecem vivos.
A gerência do peso no balé
No balé é muito difícil sentir o peso do corpo e o contato com o chão, que é feito só pelos pés, pois trabalha com o sentido da elevação e o centro de gravidade fica longe do chão o tempo todo. Os apoios em torno dos quais o balé se organiza – a distribuição de peso específica da qual depende a qualidade de seus movimentos – sua base de sustentação, centro de gravidade, principais cadeias musculares envolvidas, são alguns parâmetros do movimento que devem ser estudados numa aula, para que o movimento se faça dentro de uma integridade de coordenação.
É necessário, por exemplo, que a coluna esteja livre e para isso é fundamental que as cinturas pélvica e escapular não impeçam seu movimento. A rigidez nestas cinturas, provocada muitas vezes por hábitos posturais, atrapalha a passagem do movimento entre pés e cabeça. Também é necessário conhecer a função dos principais músculos envolvidos no en dehors, dos principais músculos envolvidos nos ports des bras, conhecer as principais alterações posturais que modificam as linhas de força lesando articulações e musculaturas. Saber o que é um joelho valgo (“perna em X”), um joelho varo (“pernas arqueadas”), uma escoliose, uma hiperlordose, retificação da coluna, enfim todo um repertório que não é o de passos de balé, mas que é tão importante quanto eles na prática dessa técnica.
Ao começar a aula com um aquecimento direcionado à sensibilização corporal – que pode ser a percepção da forma dos ossos e de suas direções, das articulações e alavancas mais usadas para cada um dos movimentos da barra, do peso das partes do corpo ou dos padrões de tensões individuais – se estuda uma série de parâmetros do movimento, que necessitam ser sentidos e apropriados pelo aluno, para que possam ser identificados por ele dentro de uma organização prévia, já codificada dos movimentos, como é o caso no balé.
O trabalho de consciência aplicado aos exercícios de barra e centro traz para o aluno a noção de que o corpo que dança balé é o mesmo que vive e apreende o mundo e pode ser trabalhado dentro e fora da sala de aula.
Meu trabalho como professora e como artista se constrói sobre uma dupla base de formação: a escola clássica italiana, que estudei por 10 anos com Maria Melô* (aluna de Cecchetti no La Scala de Milão) e as abordagens de reorganização do movimento corporal e da dança de Klauss Vianna**, com quem trabalhei por oito anos.
* Maria Melô (Milão 1910 – São Paulo1993) foi aluna de Cecchetti no Scala de Milão de 1924 a 1928.
** Klauss Vianna (Belo Horizonte 1928 – São Paulo 1992) professor, pesquisador e coreógrafo mineiro. Viveu em São Paulo de 1980 a 1992
Referências
BÉZIERS, Marie-Madeleine; HUNSINGER, Yva. O bebê e a coordenação motora. São Paulo: Summus, 1994.
BÉZIERS, Marie-Madeleine; PIRET, Suzanne. A coordenação motora: aspecto mecânico da organização psicomotora do homem. São Paulo: Summus, 1992.
VIANNA, Klauss. A dança. São Paulo: Summus, 2005.
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