A bailarina (de Cecília Meirelles)
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
Realmente me enche de ternura ver meninas pequeninas vestidas com saias de tule e coroas rodopiando, andando na ponta dos pés e dizendo que são bailarinas. A figura da bailarina faz parte do imaginário feminino de nossa cultura, como bem retrata Cecília Meirelles no poema acima. Muitas meninas, dos primeiros passos, até quando se tornam mulheres ou mesmo senhoras, têm esse sonho, esse desejo de “ser bailarina”, de se tornar esse ser etéreo, belo, puro e perfeito que é a bailarina que povoa nosso inconsciente coletivo. Muitas mães sonham em ver suas pequenas filhas desempenhando esse papel e se deliciam ao vê-las nas primeiras aulas de balé. É frequente escolas de dança receberem telefonemas de mães de meninas que nem desfraldadas são, procurando por aulas de balé. O que duas décadas atrás era o Baby Class (curso de iniciação ao balé indicado para crianças a partir de 4 anos), hoje se desmembrou em turmas que as escolas chamam de “Pré Baby 1”, “Pré Baby 2”, “Pré Ballet”, etc, acolhendo crianças cada vez menores, às vezes antes mesmo dos três anos de idade.
O que eu, como bailarina, professora e arte-educadora, me pergunto é: que sentido há numa menina de 2 anos vestir uma roupa de bailarina, uma sapatilha tamanho 23, fazer um coque com gel e ir para uma aula de balé? (Falo em meninas porque, sobretudo no Brasil, o balé é considerado uma atividade predominantemente feminina) E ainda: que sentido há em dar uma aula de balé clássico para crianças dessa idade? Minha resposta imediata seria: não faz sentido nenhum ensinar balé para crianças dessa idade. No entanto, pode fazer sentido o desenvolvimento de um trabalho de dança com crianças dessa faixa etária. Destaquei o “ensinar para” e o “dançar com” por acreditar que é exatamente aí que está o ponto de mudança de uma atividade sem sentido para outra interessante e significativa.
Muito além de um exercício físico e de um trabalho corporal, o balé é uma arte que possui uma linguagem bastante peculiar, cuja existência paira sobre uma tradição de quatro séculos. Nasceu na corte daquele rei que dizia “o Estado sou eu”, no auge do absolutismo francês. Ainda que com o passar dos séculos o mundo, a cultura e o próprio balé tenham se metamorfoseado, a semente dessa arte está ali, não devemos nos esquecer.
Tendo atuado por mais de uma década no ensino de balé, considero realmente tentador para uma professora fazer com que crianças pequenas realizem movimentos dentro dos códigos do balé clássico, todas iguais, com a postura impecável, fazendo “pé de bailarina”, andando na meia ponta, realizando gestos delicados e executando passos de balé. Vejo que muitas professoras, das mais experientes às mais novatas, têm uma preocupação excessiva com a forma dos movimentos dessa dança, que tem uma técnica bastante refinada e padrões de movimento bastante rígidos. Quando se ensina a técnica do balé propriamente dita, deve-se sim ter um cuidado à execução correta dos passos, à postura, ao apoio dos pés. Porém, quando impomos a uma criança que acabou de aprender a andar formas “corretas” de usar seu corpo, desde a postura estática até maneiras de se deslocar, deixamos de permitir que essa criança experimente e aprenda por conta própria diferentes jeitos de se mover, de dançar e de se expressar.
Frequentemente professoras dizem às crianças que o pé esticado (em flexão plantar, o padrão do “pé de bailarina”) é bonito, enquanto o pé relaxado ou em flex (dorsiflexão) é “feio”. Uma criança maior, um adolescente, ou um adulto que dance balé, ao executar os passos precisará sim esticar o pé da maneira correta, trabalhar no en dehors (rotação externa do fêmur necessária para a realização dos passos de balé), manter um determinado posicionamento da coluna, dos braços, da cabeça do quadril, específicos dessa técnica. Mas sempre com o objetivo final de fazer aqueles passos e dentro de suas aptidões físicas. Uma criança pequena não precisa conseguir executar esses passos e posições; talvez até consiga se for ensinada, mas não tem necessidade, não faz sentido e pode prejudicar seu desenvolvimento psicomotor, que muitos professores ignoram ou mesmo desconhecem. Outro ponto que critico referente às aulas de balé para crianças pequenas é a obrigatoriedade do uso das sapatilhas que muitas vezes é imposta: o balé é uma dança que acontece quase completamente no plano alto, com o apoio apenas dos pés. Desta maneira é absolutamente imprescindível que o praticante desta dança sensibilize os pés. Quando crianças, torna-se ainda mais urgente essa sensibilização que pode se dar por meio de brincadeiras de percutir os pés, massagear, tocar os dedos separadamente, caminhar experimentando maneiras diversas de apoiar os pés no chão, explorando o tato dos pés pisando em tapetes ásperos, macios, plásticos-bolha, etc… O que não impede que em algum momento as crianças calcem as sapatilhas e dancem com elas. Também é importante nessa etapa evitar a hiper-valorização da meia-ponta alta. Algumas crianças têm dificuldade em apoiar os calcanhares no chão e, se a professora não estiver atenta a isso e, ao contrário, estiver sempre estimulando a andar só no “salto alto” cada vez mais alto, pode trazer problemas para a própria prática do balé no futuro, caso a criança prossiga. Da mesma forma, é muito bem vinda a exploração do uso dos apoios das mãos no chão, possível em brincadeiras de imitar bichos, por exemplo.
Há uma infinidade de possibilidades de se trabalhar a dança com crianças para além do balé clássico, sem excluir essa linguagem, mas agregando a ela as múltiplas danças que o corpo é capaz. Aí que está a diferença do balé para e a dança com. Numa aula de balé para crianças há uma professora que vai ensinar passos para as crianças, que vão copiar e repetir. Já numa dança com crianças, a professora dança com as crianças, estimulando-as a explorarem seus corpos e com eles dançarem junto. Na minha opinião, a técnica do balé propriamente dita só deve ser introduzida efetivamente por volta dos 8 anos de idade. Crianças que começaram o balé com 3, 6 ou 8 anos, quando chegarem aos 13 muito provavelmente terão um nível técnico bastante similar.
O trabalho feito antes disso deve apenas contribuir para o despertar da criança para seu corpo, seu movimento, sua expressividade e, finalmente, não só para o balé mas para a dança num sentido amplo. Mesmo dos 8 anos em diante, a técnica deve ser trabalhada pelo professor de forma responsável e respeitosa com o corpo dos indivíduos praticantes do balé sem perder de vista que, antes de bailarinos somos pessoas. Pessoas com diferentes corpos, mentes, histórias, repertórios e padrões de movimentos. Devemos sim prezar pelo trabalho técnico e estilístico do balé, mas atentar à anatomia e à biomecânica própria dessa linguagem, e na importância dos alunos conhecerem seus corpos e seus potenciais e trabalharem os passos do balé corretamente e conscientemente, sem que ele se torne uma mera cópia de formas prontas.
É igualmente necessário que os alunos tenham sempre em mente que estão praticando uma arte que tem uma história e um contexto. E que seus movimentos precisam fazer sentido em todos os sentidos. Aí entra o trabalho do professor de proporcionar uma sensibilização por meio da apreciação (trazer referências, vídeos, livros, performances), do estudo da música para além da capacidade de contar até 8 (como por exemplo usar o conceito de paisagem sonora, ampliando o sentido da audição, estimulando uma escuta atenta, ativa e sensível) ativando sempre a imaginação, a sinestesia e proporcionando uma verdadeira experiência estética pela prática do balé. Lembrando que a palavra estética vem do grego aesthesis, que significa sentido. Aquele que pratica o balé anestesiado não vê sentido, não sente, não dança. Faz ginástica, fitness. Balé pode ser muito mais que isso.
Nosso desafio como professores é ter a capacidade de ensinar uma técnica que vem sendo desenvolvida e evoluindo ao longo dos séculos, sem apagar essa multiplicidade de corpos, mentes, repertórios e padrões e sim com eles dialogando, jogando e dançando.
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