Crédito das Fotos: Ilustração de Gabs Martins @ilustragabs.
Alguns chamam isso de síndrome de impostora, mas eu tenho lá minhas dúvidas.
“Síndrome de impostora” é um nome que tem aparecido bastante nas mídias sociais para descrever um conjunto de pensamentos e atitudes de mulheres, em sua maioria (mas não só), que não se percebem verdadeiramente capazes, habilidosas e talentosas nas suas profissões.
Como bailarina, eu me identifico com essa descrição. Mais de uma vez, pensamentos como “passei na audição por sorte” ou “acho que fulana é bem melhor para esse papel do que eu” ressoaram na minha mente e exercem influência ainda hoje sobre minhas decisões profissionais. Inclusive, à medida que escrevo esse texto, meu monólogo interno é mais ou menos assim: “Isso aqui não é relevante. Será que estou apta a escrever sobre isso? Colunista, eu? O que tenho a dizer, afinal? Não, esse texto está fraco. Vou deletar e recomeçar do zero. Ou nem recomeçar. Deixa pra lá”.
Recentemente, conversei com colegas artistas sobre o assunto e elas ressaltaram a sensação de insegurança sobre sua própria capacidade na hora de cobrar por seu trabalho ou para se lançar em um projeto novo. “Eu não acho que sou boa o suficiente para poder dar aula” ou “nunca sei quanto cobrar porque ainda não sou tão boa” foram frases que minhas amigas reproduziram, nas quais eu encontro algum conforto, por descobrir que essas inseguranças não são só minhas. Contudo, também fico incomodada ao perceber tantas artistas que eu admiro se sentindo limitadas. É aquela história da grama do vizinho que é mais verde…
Mas antes de chegar às bailarinas que se cobram demais, vamos destrinchar esse conceito de “Síndrome de impostora”.
A origem da expressão
O termo “Impostor Phenomenon” foi cunhado em 1978 por duas psicólogas norte-americanas, Pauline R. Clence e Suzane Imes, e desde então tem sido útil para psicólogos, coaches, executivos, entre outros profissionais. A expressão resume a ideia de que, a qualquer momento, a mulher (ou homem) sente que será flagrada como uma grande fraude, pois, no fundo, ela não acredita ser merecedora das suas conquistas. Ou seja, uma mulher que ocupa um cargo de prestígio, por exemplo, enxerga-se como uma impostora que chegou lá por sorte, acaso ou condescendência.
Não sei em que momento dessa genealogia a tradução se tornou “síndrome”, em vez de “fenômeno”, termo que me parece muito melhor (o telefone sem fio da internet…). Por um lado, essas expressões que se popularizam na internet acabam cometendo imprecisões conceituais que levam a confusões e simplificações; por outro, levantam pontos importantes, e é justamente pela simplicidade que elas nomeiam um fenômeno passado despercebido por muitas de nós.
A autocobrança na dança
Convivi ao longo da minha formação e experiência profissional com muitas mulheres fortes em cargos de liderança – professoras, diretoras, coreógrafas. Talvez o que haja em comum entre todas elas é que elas eram muito exigentes consigo mesmas e com as pessoas à sua volta. Essas mulheres me ensinaram que é preciso buscar se aperfeiçoar ao máximo. Se conseguiu dupla pirueta, almeje a terceira. Se seu salto foi bom, tente saltar mais alto, ou com mais limpeza, com um um grau de dificuldade técnica maior. Pensa aí – com certeza alguém veio à sua mente enquanto você lia esse parágrafo. Dependendo da dança que você pratica, seu processo de aprendizagem está coladinho na imagem de um corpo ideal, potente e eficiente. Um corpo que não tem espaço para cansaço, desejo, dores menstruais, velhice, fraquezas de qualquer sorte.
Essa mentalidade definitivamente nos mantém desafiadas constantemente e nos faz buscar um rigor técnico e artístico cada vez maior. Mas nesse cenário imaginário em que nada está bom o suficiente, os dedos começam a apontar para si: meu desempenho não está bom o suficiente, logo, eu não sou boa o suficiente. O grau de exigência vai se elevando e nós nos tornamos tão críticas, que nossas qualidades são diminuídas ao ponto de mal sermos capazes de enxergá-las. É aí que a exigência se torna contraproducente.
Focamos somente naquilo que nos falta, e assim, dançar se torna só sobre se provar capaz, e não sobre celebrar o corpo, explorar suas possibilidades comunicativas e expressivas, aproveitar os benefícios da atividade física – ou qualquer outro motivo pelo qual alguém dança.
Tenho uma aluna (e amiga querida) que em aula se preocupa tanto com executar o movimento com perfeição que em alguns momentos ela nem consegue se mover. E eu me vejo tanto nela!
É preciso admitir que chega uma hora que correr atrás de um objetivo por definição inalcançável é desestimulante e surte o efeito contrário. Inevitavelmente damo-nos conta das nossas fragilidades e os trajes de Mulher Maravilha não nos cabem mais. E então, é preciso vestir um figurino mais confortável. Como dançar com as nossas vulnerabilidades, e não apesar delas?
A dimensão coletiva
Eu realmente não consigo olhar para a realidade social e colocar a questão da autocobrança feminina como um fenômeno apenas individual.
Já são tantas as responsabilidades que colocam sobre nossos ombros. Nas mídias sociais, costumamos encontrar respostas fáceis para perguntas complexas. Seria fácil escrever “mulher, se valorize! Cobre caro pela sua aula! Se ame! Aceite seu corpo!” e você que lute para se resolver na terapia, nos coaches ou livros de autoajuda para que consiga mudar seu mindset e se tornar uma CEO! Mas estas são apenas frases que respondem à mesma lógica neoliberal individualizante que venho criticando.
Veja, essa narrativa da self-made woman em muito se parece com a nossa Mulher Maravilha super poderosa, que quer dar conta de tudo. Nessa lógica, amar meu corpo, por exemplo, vira mais uma cobrança que me imponho e que – imaginem só – eu me frustro por não conseguir.
Quando olho para a realidade social, vejo uma estrutura patriarcal que inferioriza tudo que é considerado feminino e que nos coloca na posição de sexo frágil. Criar e liderar são atividades reservadas aos homens, os quais, convenhamos, não são muito bons em ouvir nossas ideias. Pesam-se, além disso, intersecções de raça e classe: pessoas negras e/ou periféricas que conseguem romper barreiras e ocupar espaços tradicionalmente brancos e elitistas podem, também, sentir um senso de não pertencimento que é internalizado como a sensação de não ser capaz ou merecedora daquilo.
Outras condições materiais estão em jogo. Em relatos que recebi de artistas jovens recentemente, a gana de criar e dançar vem acompanhada por um vazio ao perceber que as oportunidades são escassas e, para muitos, uma condição de vida digna se encontra buscando emprego em outras áreas. Não dá para desmerecer o impacto na saúde mental decorrente de uma rotina de alguém que passa 1h30 na condução todo dia para dar uma aula que paga 30 reais a hora.
Assim, em um contexto em que a dança no Brasil se caracteriza por poucas oportunidades de emprego e muita informalidade, faltam-nos incentivos para que nos sintamos valorizadas e seguras com relação à carreira. E nesse ponto, a equação esforço = técnica = emprego não condiz com o real, e é uma variante da falácia da meritocracia que estamos cansadas de criticar.
Para falar de saúde mental, precisamos ter cuidado com uma sobrerresponsabilização do indivíduo, que é típico de uma sociedade neoliberal. A saída, como sempre, é coletiva.