Por Maria Basulto
Este ensaio nasce inspirado no compartilhamento temático “Vixi… parece que caiu… Pesquisar, criar e ensinar arte em um mundo pandêmico”, apresentado no VIII Seminário Interno Mario Santana, e que trouxe diversos aspectos sobre a realização de pesquisa e criação durante a pandemia da Covid-19. Quando um participante pergunta ao Prof. Dr. Renato Ferracini sobre quem serão as referências para fazer pesquisa na pandemia e como testemunhar esse tempo, Ferracini responde que seremos nós, pesquisadores que atualmente vivenciamos esse momento e precisamos lidar com as dificuldades da situação, adicionando que “não existe uma fórmula para testemunhar uma pandemia” (FERRACINI, https://www.youtube.com/watch?v=ChAcmSc0JYo. Acesso em 06/10/2020) e que cada um deverá encontrar sua própria maneira de fazê-lo.
Tendo vivenciado a maior parte da pandemia da Covid-19 com o foco em criações cênicas no papel de criadora, espectadora e participante de rodas de conversa sobre tal momento, encontro aqui uma oportunidade para trazer reflexões sobre as relações de artistas com a criação na área da dança contemporânea, principalmente no período mais inicial da pandemia, no 2º trimestre de 2020, quando todos fomos surpreendidos com tal crise sanitária e com a necessidade de seguir produzindo em confinamento domiciliar.
Acredito que testemunhar esse momento, trazendo não apenas impressões pessoais, mas também de programadores culturais e de outros artistas, é uma maneira de registrar esse tempo e produzir referências, principalmente para construção da memória, a qual tem grande importância, quando coletiva, pelo seu potencial de gerar política e criar identidade – parafraseando a fala de Ferracini, no compartilhamento “Relatos e reflexões sobre autobiografias, autoficções e temas correlatos nas criações cênicas”, do mesmo seminário.
Tais questionamentos também vêm ao encontro da presente pesquisa de mestrado que realizo no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp, a qual procura identificar as estratégias que o intérprete de dança contemporânea realiza para se adaptar às atividades de sua profissão, principalmente no trânsito entre diferentes processos de criação. O foco sobre a adaptação do intérprete amplia-se no momento pandêmico para adaptações na criação e compartilhamento de obras cênicas de uma forma geral, abarcando também instituições que promovem ações culturais.
Este trabalho se apresenta sustentado tanto pela experiência vivida pela autora no processo de criação de “Mover em rede: desconfinar-se”, desenvolvido em abril e maio de 2020, com as problemáticas surgidas ao longo desse processo, como também pelas experiências de outros artistas da dança, experiências essas coletadas em diálogo virtual e informal com os mesmos.
O projeto “Mover em rede: desconfinar-se”
Este projeto foi criado a partir do chamamento emergencial “Poesia nos Escombros”, promovido em 2020 pelo Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo (CRDSP) dentro do programa “Transversalidades Poéticas”. O chamamento foi criado com o intuito de amparar artistas da dança logo no início da pandemia, quando, repentinamente, muitos contratos de trabalho foram cancelados. O chamamento contemplou um total de 18 projetos e concedeu grande liberdade para os artistas realizarem suas criações, não exigindo qualquer obrigatoriedade enquanto aos formatos das criações ou mesmo às necessidades tecnológicas, visto que a grande maioria dos artistas participantes não possuía grandes recursos para suas produções e que o edital não conseguia oferecer tal suporte. Esse contexto possibilitou uma vasta gama de modos de produção, formatos e estéticas, com exibições nas mais variadas plataformas virtuais, como o Zoom, o Instagram, o Facebook e o YouTube, segundo a coerência de cada projeto.
A proposta de “Mover em rede: desconfinar-se” nasce da tentativa de conexão com pessoas por meio virtual para além da dinâmica veloz das mídias sociais, criando uma dança em rede. Tendo como inspiração pensamentos/frases de outras pessoas, compartilhadas em comentários no Instagram, foi estimulada a criação e publicação de vídeos curtos, ampliando um canal de comunicação mais sensível e artisticamente diverso.
O pontapé inicial se dá com uma dança criada por mim, no quintal da casa onde estive nos primeiros meses da pandemia. O vídeo da dança foi publicado no meu perfil do Instagram (@mariabasulto29) junto a uma reflexão que surge da experiência de confinamento. Na mesma postagem foi feito um convite para que outras pessoas entrassem nessa rede, criando vídeos de dança a partir de reflexões pessoais naquele momento. Com o desejo de seguir em criação, segui produzindo vídeos curtos a partir de um sorteio dos comentários dos participantes dessa rede criativa. Ao criar a partir de sugestões de pessoas com interesses muito diferentes, e com as quais não tinha uma relação próxima, pude me deslocar para um olhar diverso daquilo que vinha me movendo anteriormente, considerando, também, que as produções em casa e em vídeo me abriram um campo de experimentação outro, sobre o qual eu não havia me debruçado até então. Todo esse processo se desenvolveu ao longo de um mês.
Após a realização do projeto em si, também foi organizada, pelo Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo (CRDSP), a Mostra “Poesia Sobre os Escombros”, que reuniu em nove dias do mês de setembro os dezoito projetos contemplados no chamamento emergencial em uma programação unificada. Nesse momento, as ações aconteceram de maneira menos dispersa nas redes dos artistas, diferentemente das exibições de maio. Para a Mostra, decidi montar um único vídeo com oito das onze produções que compuseram o “Mover em rede: desconfinar-se”, sendo quatro de minha autoria e quatro produzidas pelos participantes. Assim, foi possível apresentar o projeto de forma concentrada, diferentemente da proposta inicial, na qual os vídeos eram publicados no Instagram dos participantes ou no meu próprio perfil, espalhados pela rede. Após a exibição do vídeo compilado foi aberto um espaço para que os participantes do projeto pudessem compartilhar suas experiências sobre a produção dos vídeos e para que o público fizesse apontamentos e perguntas.
Interrelacionando perspectivas
Principalmente no início da pandemia, o isolamento social trouxe inseguranças, incertezas e certa solidão para os artistas da cena, e me era especialmente angustiante navegar pela timeline do Instagram e assistir a publicações de dançarinos improvisando em suas casas. Enquanto dançarina contemporânea, particularmente, nunca havia me entusiasmado em compartilhar vídeos com minhas danças nas redes sociais, o que, durante o confinamento, passou a não mais ser uma escolha, e sim uma imposição para a divulgação e apresentação de trabalhos e criações. Unindo o desejo de amenizar a solidão com a necessidade de produzir dança para o modo virtual, através de “Mover em rede: desconfinar-se” procurei contato com outras pessoas, não necessariamente dançarinos, para saber o que estavam pensando naquele momento, para além de contemplar suas danças pela tela.
Para executar este projeto houve a necessidade de muitas adaptações em relação aos modos de produção anteriores e, no meu caso, aceitar o meio virtual como a única alternativa para que ele acontecesse, foi a primeira delas. Já para o artista Edson Lima, dançarino, coreógrafo e diretor do Núcleo Ximbra, grupo criado em 2011 na Zona Leste da cidade de São Paulo, a utilização de recursos virtuais já acontecia anteriormente à pandemia, porém, com propósitos diferentes. Lives de intervenções e de espetáculos presenciais do grupo já eram compartilhadas, mas a criação de um espetáculo de dança pensado para o formato em vídeo nunca havia sido feita, como foi em “SE JOGA 180×260”, estreado em 2020 pelo Núcleo.
Sem dúvida, antes da pandemia a utilização dos meios digitais já era frequente para divulgações de eventos culturais e festivais de dança, porém, no cenário pandêmico, as redes passam a ser o próprio canal de transmissão de produções artísticas.
A casa
É possível identificar adaptações em muitos aspectos, e um dos pontos que se impõe diretamente a todos é o fato de que as produções passaram a ser realizadas dentro da casa dos artistas, e assistidas pelo público através das telas. A relação com a casa, inegavelmente se modificou quando passou a ser o local de trabalho de uma parcela da população, o que não foi diferente para os artistas. Ao criar os vídeos para o “Mover em rede: desconfinar-se” houve grande preocupação da minha parte ao escolher os espaços da casa para a gravação das danças, principalmente para evitar expor intimidades do lar, uma vez que o acesso ao vídeo seria disponibilizado a todo e qualquer público no Instagram e não apenas a um círculo de amigos, familiares, colegas ou indivíduos escolhidos a dedo. Além disso, alguns espaços e mobília da casa contribuíram para a execução das ideias, de forma a serem previamente selecionados e posicionados em diálogo com a câmera do meu celular (o melhor recurso que tinha à minha disposição naquele momento). Ou seja, embora o espaço da casa tenha sido material fundamental para a criação das danças, adquirindo a função de um tipo de cenário em alguns casos, houve, concomitantemente, grande cuidado em relação à sua exposição.
Abrir a casa para o público, em alguma medida, foi e está sendo necessário nesse contexto de pandemia, e o que se compartilha é fator determinante nas criações. A artista, coreógrafa e professora Jussara Miller conta que ao criar o solo “Proximidade, um olhar para o avesso”, criado a convite do Sesc para a programação da série Dança #EmCasaComSesc, exibida na página @sescaovivo do Instagram, em julho de 2020, houve o desejo de convidar o público para a sua casa, e a criação aconteceu com o cuidado e intuito de “adentrar a intimidade da casa”. “Eu queria olhar para o meu avesso, já que estava num momento de tamanha desconstrução da arte, da própria dança”, compartilha. Já o artista Márcio Greyk, dançarino e diretor do Grupo Zumb.boys, criado em 2003 no bairro Ermelino Matarazzo na Zona Leste de São Paulo, convidado do Sesc para o mesmo evento, cria “Solos de Laje”, mas afirma que não houve uma preocupação em relação à exposição da casa em si, atentando-se mais à perspectiva e ao recorte do olhar que iria proporcionar ao público com o uso da câmera. Márcio pontua que essa despreocupação com a exposição da intimidade de sua casa provavelmente seria diferente caso não morasse sozinho e vivesse com outras pessoas, pois a intimidade do outro também entraria em questão.
Ainda sobre a questão da função da casa durante a pandemia, trago a reflexão do Prof. Dr. Arnaldo Siqueira no compartilhamento temático “Topologias do espetáculo: arte e identidade hoje”. Siqueira, que atua também como produtor e curador de dança, principalmente de festivais e mostras, traz um panorama sobre a exibição e circulação de espetáculos por meios digitais e coloca que o impacto da pandemia
altera o conceito, de certa maneira, de equipamento cultural, equipamento cultural que, em linhas bem gerais, eram os teatros, os museus, etc. Agora tem que se considerar também, nessa alteração do conceito de equipamento cultural, o sentido das próprias casas. As casas das pessoas serão extensões dos equipamentos culturais, sendo elas mesmas consideradas como equipamentos culturais. Ora, isso vai redimensionar todo um conceito de economia, sabe, de valor da cultura, do entendimento do que são os componentes culturais. Muitos deles, agora, não só baseados em números, ou seja, não só a partir de viés quantitativo, mas sobretudo qualitativo.(SIQUEIRA, https://www.youtube.com/watch?v=UHnvQ0XNVe0. Acesso em 07/10/2020).
A percepção de Siqueira sobre as casas se tornarem uma extensão dos equipamentos culturais desperta alguns questionamentos sobre o trabalho dos profissionais dasartes que, mais uma vez com recursos escassos para o trabalho, agora se utilizam de seus espaços pessoais para exercer sua profissão. Durante a criação de “Mover em rede: desconfinar-se”, em momento algum senti que a minha casa havia se tornado uma extensão do CRDSP, uma vez que as escolhas dos espaços exerciam uma função de “cenário” e não de um espaço onde o público pudesse usufruir e conviver. Por outro lado, a casa foi o espaço disponível para realizar o projeto, trazendo a possibilidade de dar continuidade às atividades profissionais, importantes não apenas por uma questão financeira, mas também pela necessidade de permanecer existindo aos olhos do mundo, em intercâmbio com outros artistas e para uma manutenção das redes profissionais. Nesse sentido, a casa pode ser considerada um estúdio de criação e um espaço cênico simultaneamente, mas não um espaço de encontros interpessoais e convívio, tão caro à grande maioria dos artistas.
Para a artista Jussara Miller, embora sua casa estivesse sendo aberta para a apreciação do público através do vídeo, ela não considera que sua residência passou a ser uma extensão do Sesc naquele momento, mas entende o evento como uma parceria entre a artista e a instituição Sesc. “Eu não me senti no palco do Sesc, por mais que o convite fosse do Sesc, eu me senti em casa, querendo abrir a porta da minha casa pra mostrar a minha dança”, afirma. Márcio Greyk também não vê sua casa no papel de extensão do Sesc, uma vez que não considera sua casa um
espaço público no qual as pessoas podem ter acesso livre e tomadas de decisões sobre, como acredito que devem ser os equipamentos culturais, ou seja, com uma gestão horizontal, construída por várias mãos. Ao mesmo tempo, quando olho para o pensamento de produzir e compartilhar a arte, ou uma produção de conhecimento a partir de uma dança, consigo sim me aproximar, não dos equipamentos em si, mas de possíveis fundamentos que movimentam esses espaços. (GREYK, trecho de entrevista, 30/12/2020).
Além disso, conta que mesmo antes da pandemia já observava que vários mestres de Capoeira de Angola vinham abrindo suas casas para que as pessoas pudessem praticar, e que as garagens e quintais de algumas residências já eram locais onde se promoviam espaços de compartilhamento artístico e educativo, sendo territórios de encontro independentes de equipamentos culturais ou editais.
Além do ponto de vista desses artistas, os quais realizam uma pesquisa artística ininterrupta e que puderam seguir criando durante a pandemia, trago também o olhar dos artistas Maitê Lacerda, também programadora de dança no Sesc Pinheiros – SP, e Marcus Moreno, também programador cultural na Oficina Cultural Oswald de Andrade, na cidade de São Paulo. Maitê coloca que “os espaços culturais são tão complexos e diversos” que talvez fosse o caso dizer que eles “tiveram que estender suas atuações para alcançar as pessoas, [mais] do que atribuir à casa um comportamento de espaço cultural”. Para Marcus, no caso de algumas obras é possível pensar a casa como uma extensão do equipamento cultural, como no projeto “Dança contemporânea em domicílio” (2005), da artista Cláudia Miller, obra que é pensada para o espaço da casa do espectador, com o deslocamento da artista até lá. “É quase como se você transpusesse o espaço cultural pra dentro de casa, mas eu sinto que isso não acontece em todas as obras”, reflete o programador. Percebe, ainda, que as apresentações virtuais não têm a potência de substituir o ritual intrínseco das apresentações presenciais, que se dá, por exemplo, desde a compra de um ingresso até a disponibilidade do público de a ir até um espaço cultural, seja este de qual natureza for.
Programação cultural e distância geográfica
Enquanto programador cultural, Marcus Moreno relata que, com o início da pandemia, a programação da Oficina Cultural Oswald de Andrade teve que ser redesenhada, levando-se em conta a natureza e a necessidade dos trabalhos artísticos. Quando os espaços culturais tiveram que suspender as atividades presenciais, a Oficina Cultural Oswald de Andrade estava recebendo o FarOFFa – Circuito Paralelo de Artes de São Paulo e a Mostra Internacional de Teatro – MITsp. Nesse primeiro momento, de sobressalto, houve um diálogo com os artistas para compreender como adaptariam suas obras para o contexto virtual, e seguiu-se nessa experimentação ao longo do primeiro trimestre da pandemia. Marcus observou também que foi possível atingir um grande público que vive fora da cidade de São Paulo, principalmente para as ações formativas promovidas pela instituição, e que parte desse público se fidelizou, participando de atividades subsequentes. Em um segundo momento, depois de terem observado como se deu a programação e a reação do público
a gente passou a fazer a coisa mais desenhada para esse formato virtual, lógico que com as ferramentas que a gente tinha, que não são recursos enormes, mas, já entendendo um pouco mais das ferramentas, a gente passou a desenhar uma programação que fazia mais sentido para o ambiente virtual. (MORENO, trecho de entrevista 06/01/2021).
Pela programação do Sesc Pinheiros (SP), Maitê Lacerda conta que participou diretamente da criação de dois projetos na área da dança durante a pandemia: Enquanto Dormem os Teatros e Constelações.
Quando pensei nestes projetos, entre maio e junho do ano de 2020, me encontrava em isolamento social bem rígido, não encontrava ninguém além de meus familiares e havia, nesse período, o cuidado de lidar com ideias que não expusessem ninguém a situações nas quais pudesse haver contaminação. Depois deste primeiro período, as restrições mudaram um pouco de figura – com a mudança de fases no Plano São Paulo. (LACERDA, trecho de entrevista, 06/01/2021).
O projeto Enquanto Dormem os Teatros aconteceu entre agosto e novembro de 2020, com o registro de artistas em diferentes estágios do isolamento social e em condições diversas para lidar com a pandemia nas cidades de São Paulo, São Luiz, Fortaleza, Rio de Janeiro e Sertão do Cariri. Houve uma preocupação de que os projetos não “passassem imunes por todas as questões que estamos vivendo, queria que eles pudessem incorporar os sentimentos dos artistas, ver como o isolamento tocava a prática e cotidiano de cada um”, comenta a programadora.
O projeto Constelações traz outra proposta, partindo do distanciamento geográfico para aproximar pessoas. “Se estamos colocados neste lugar de trabalhar assim, à distância, por que não trabalhar com alguém que está longe e seja desconhecido?”, é o que o projeto sugere. Maitê conta que este projeto teve duas edições e que ainda não está finalizado, sendo que a primeira teve como encerramento uma série de rodas de conversa e a segunda resultou na distribuição de postais sobre o projeto.
Tive muita preocupação em criar projetos que fizessem um recorte muito específico em nosso tempo, sendo capaz de registrar as peculiaridades deste tempo em que vivemos, criando situações que pudessem acolher os artistas – extremamente vulnerabilizados num momento como este – e o público. (LACERDA, trecho de entrevista, 06/01/2021).
Nota-se que a distância geográfica entre os artistas e entre eles e o público é ressignificada no contexto virtual. Edson Lima relata que o formato online favoreceu o acesso a diversos eventos que acontecem em diferentes regiões da cidade de São Paulo. Por viver em uma área mais periférica da cidade, o tempo de deslocamento muitas vezes dificultava ou impossibilitava sua participação em atividades nas regiões centrais da cidade, por exemplo. Coloca ainda que, ao realizar ações artísticas virtuais no período da pandemia, notou a presença de um público centralizado interessado, o qual geralmente não se deslocava até a periferia da cidade para prestigiar as criações de seu grupo.
É possível identificar um aspecto positivo da conexão pelo modo virtual. Uma reportagem de novembro de 2020 da Folha de São Paulo trata sobre a venda de ingressos para teatro online na pandemia e a oportunidade de acesso a essa linguagem artística a muitos cidadãos brasileiros. Na reportagem, a professora Bruna Camêlo, moradora da Chapada da Natividade (TO), que nunca havia ido ao teatro presencialmente, pôde assistir à peça “Autobiografia Autorizada”, de Paulo Betti, e afirma que a experiência valeu muito a pena, embora não tivesse sido presencial. Na mesma reportagem é citada uma pesquisa realizada pelo Itaú Cultural e pelo Datafolha que mostra que 67% dos entrevistados acreditam que houve uma melhora na democratização do acesso à cultura através da internet com a chegada da pandemia. Entretanto, faz-se necessária uma ressalva sobre tal democratização, visto que o acesso a aparelhos tecnológicos e à internet de qualidade ainda não abarca toda a população.
Há diversas elucubrações a respeito da continuidade das atividades culturais virtuais mesmo após a pandemia. É possível que aconteçam de uma forma híbrida ou que surjam novos tipos de programações interessadas pela linguagem de dança ou teatro “criados para o vídeo”. Ambos os programadores, Maitê e Marcus, concordam que dificilmente a programação cultural digital deixará de existir, mas ainda é cedo para dizer a forma como acontecerá.
Nós, espectadores
Artistas ou não, todos somos potenciais espectadores da arte. Se por um lado o público fiel das artes cênicas se estabilizava em uma média já relativamente conhecida e muitas vezes consistia nos próprios artistas, no ambiente online há mais uma possibilidade de se ampliar o número e os perfis dos espectadores.
O projeto “Mover em rede: desconfinar-se”, por exemplo, apresentado no início deste ensaio, possibilitou o encontro com artistas de diferentes cidades, além da participação de uma colega que não trabalha na área das artes, mas que se interessou pela proposta e participou ativamente na produção de um vídeo que compôs o projeto. Na Mostra que aconteceu em setembro de 2020, foi possível organizar um encontro entre todos os participantes do projeto em uma conversa sobre a experiência das criações dos vídeos, além do público que quisesse participar como ouvinte e realizando perguntas e comentários. Embora o alcance deste projeto não tenha sido numericamente significativo[1], a qualidade da aproximação entre as pessoas foi importante por reunir artistas com perfis diversos e por haver instigado uma pessoa que não vivencia a dança em seu cotidiano a desenvolver uma criação.
É perceptível o grande número de acessos a algumas ações culturais online. O projeto Transversalidades Poéticas, no Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, convidou alguns artistas da dança para apresentarem falas públicas através do Facebook, e foi possível notar um número expressivo de espectadores. No caso da fala da artista Morena Nascimento, por exemplo, houve 1300 visualizações, o que seria inviável caso o evento fosse presencial. É importante pontuar que o fato desse tipo de evento permanecer disponível para acesso após a exibição ao vivo é um recurso significativo para alcançar um público maior. Em contrapartida, Márcio nota que em algumas apresentações ao vivo que assistiu, muitas vezes havia um número pequeno de espectadores no momento da exibição devido à comodidade do material permanecer disponível na rede, e considera tal dispersão uma fragilidade, visto que o número de artistas envolvidos na produção acabava superando a quantidade de espectadores naquele momento.
Sob outra perspectiva, o restrito meio para apreciação da cultura nesse período, que consiste na tela de computadores, tablets e celulares, acarreta também em um desgaste do espectador. Jussara Miller considera que nos primeiros meses da pandemia foi uma espectadora dedicada, e que havia uma sensação de estar fomentando a arte virtualmente, em um movimento de resistência, dançando e também assistindo a danças, mas que no decorrer dos meses foi sendo tomada pelo cansaço, inevitável devido ao excesso da vida virtual. Assim como Jussara, percebo que a minha relação como espectadora no mundo digital se modificou com o passar do tempo, tanto pela exaustão das telas como pelo tempo que se tornou mais curto quando alguns trabalhos foram retomados após o primeiro choque da pandemia. Assim como no contexto presencial, a seletividade foi fundamental para conseguir lidar com a gigantesca variedade e volume dos eventos online, sendo que, em um primeiro momento, fui tomada por uma certa ilusão de que estar em casa permanentemente me proporcionaria maior disponibilidade de tempo e energia.
No presente instante ainda não vejo com nitidez se algum formato específico de apresentações virtuais atingiu um sucesso maior. Edson acredita que criar dança por meio virtual é também um trabalho audiovisual muito potente, mas que pode ser prejudicado de acordo com os recursos e tempo disponíveis do artista. Por esse motivo, identifica que muitas produções virtuais “não faziam tanto sentido na hora de assistir”. Marcus conta que, enquanto espectador, em alguns casos é possível se manter imerso na obra, mas que em outros, há grande dispersão de sua atenção, e que se interessa mais por trabalhos que têm um pensamento para a câmera, como linguagens que se aproximam dos filmes de dança ou da videodança, por exemplo. Maitê compartilha que, enquanto espectadora, se sente “mais tocada quando a apresentação não tenta superar a ausência do presencial e sim constrói um desafio próprio para o artista e para quem assiste”.
Considerações finais
Ao reunir alguns pontos de vista e experiências de artistas e programadores de dança, é possível notar uma vasta gama de desafios que se impõem para a continuidade da produção cênica virtual com a chegada – e longa permanência – da pandemia. A adaptação neste momento é crucial a todos, artistas e espectadores, e longe de romantizar o fazer do artista, é explícita a necessidade da flexibilização e criatividade para enfrentar o momento pandêmico e seguir produzindo arte.
BASULTO, Maria. (Maria Stella Agostini Basulto). Artes da Cena em Adaptação – Criação na Pandemia. Botelhos: Unicamp. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena – IA – UNICAMP; Orientadora Juliana Martins Rodrigues de Moraes.
Referências
MOURA, Eduardo. Teatro descobriu vida na internet, mas otimismo no setor cultural é incerto. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 nov. 2020. Folha Ilustrada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/11/teatro-descobriu-vida-na-internet-mas-ha-motivo-para-otimismo-no-setor-cultural.shtml. Acesso em: 17 jan. 2021.
[1] Participaram ativamente do projeto, como criadores, quatro pessoas. Os posts receberam dezessete comentários que estimularam as criações. Na Mostra online estavam presentes para a conversa, aproximadamente, dez pessoas, com um total de 148 visualizações.