Crédito das Fotos: Marina Caron
Por Marina Caron [1]
“A experiência não está do lado da ação, ou da prática, ou da técnica, e sim do lado da paixão. Por isso, a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, vulnerabilidade, exposição” (Sobre la experiência de Jorge Larrosa Bondía, 2006, p. 108, tradução nossa).
As práticas corporais vindas de abordagens somáticas se propõem a trabalhar a consciência do corpo e a relação com outros corpos. Mas tenho visto, em minhas aulas de expressão corporal, que o corpo parece ter perdido sua capacidade de ser afetado. Está menos poroso.
Porosidade é o que tem poros, o que está repleto de furos, perfurado, permeável. Penso em um lugar arejado, ventilado. Ou em algo esponjoso, que absorve líquidos com facilidade. Sempre me lembro dos ossos porosos. Lembro da primeira vez que vi um osso humano cheio de espaços de ar e de líquidos. Na minha prática, alunas e alunos se acostumam a ver ossos de resina. Temos essa imagem de ossos empilhados e sem maciez. Ou a imagem em papel dos livros de anatomia. Temos ainda uma sensação enraizada de líquidos e sangue como algo que se refere a doenças ou machucados. Percepções deturpadas de pensamentos fragmentados. É preciso experimentar novamente as sensações. Recolocá-las na percepção de maneira integrada.
Perceber-se poroso é assumir uma natureza composta de estrutura sólida e espaços vazios, espaços líquidos, fluidos, e espaços moles, maleáveis. E é exatamente isso que nos permite o movimento e a transformação.
É também, e sobretudo, assumir a emoção oscilante e cheia de conflitos que habita o mesmo lugar interno. A porosidade no corpo é, da maneira como eu vejo, perceber a estrutura permeável e entender a rigidez dos bloqueios mentais que diminuem espaços corporais — e trabalhar com isso. Ser poroso é exercitar a abertura de espaços, a mobilidade e a liberdade.
Me deparo constantemente com o exercício intenso de procurar espaços internos, de soltar o ar, de engolir saliva, de afrouxar as articulações, de dar mobilidade, de sentir cartilagens e mucosas, de deixar o fluxo sanguíneo livre, de acalmar o coração.
Procuro, pelo corpo, abrir o pensamento, que também é corpo. Aqui, abrir significa mudar de ideia sobre as coisas, receber as informações do mundo, transformar dentro, restabelecer relações e criar novos jogos interpessoais.
Falar de porosidade é falar de recepção. Como é difícil receber. Aceitar o que vem para nós, que é, frequentemente, tão diferente do que esperamos, do que foi gerado por nossa expectativa e necessidade de controle.
Aprendemos a valorizar a ação. Nossa atitude ativa no mundo. E pouco buscamos a recepção, a passividade, o vazio. Temos pouco tempo para elaborar o que recebemos e já somos obrigados a novas ações. Na linguagem do corpo, o silêncio de movimento, a espera, a escuta de que falávamos antes, é uma resposta muitas vezes mais verdadeira.
Observo que a recepção está intimamente ligada ao convite para o jogo, para a relação. Quando exercitamos a recepção, ficamos repletos de nós mesmos e temos o que compartilhar. Repletos de sensações internas, somos também mais generosos. É comum ver alunas e alunos emocionados, repletos de si. Logo depois disso, se colocam disponíveis para o outro. Fazem, quase espontaneamente, o convite para a troca criativa. Ser de novo. E de novo. Abrir um pouco mais. E um pouco mais.
Esse texto faz parte do livro “Corpo Transborda” de Marina Caron, publicado pela Summus Editorial em 2021. Compre no SITE da Summus com nosso cupom de 20% de desconto! Cupom: MUD20SUMMUS |
[1] Mestra em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH), especialista em Corpo: Dança, Teatro e Performance (ESCH) e especialista em Dança Contemporânea pela The Place – London Contemporary Dance School (LCDS), em Londres. Graduada em Dança (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professora de Expressão Corporal no Teatro-escola Célia Helena (TECH) desde 2004. Atuou como bailarina, criadora e diretora de dança junto ao Estúdio Nova Dança e a Cia. Oito Nova Dança de 1998 a 2011. É integrante do Núcleo Arremesso de Artes, onde faz criações em dança e teatro desde 2008. Faz preparação corporal e direção de movimento para artistas da cena desde 2004. Tem formação em psicomotricidade no trabalho da coordenação motora de Piret e Béziers, com formação complementar em técnicas somáticas e massagem terapêutica. Tem experiência na área de artes, com ênfase em dança, teatro e performance.