O que faz viver

Crédito das Fotos: Inês Corrêa


(…) há limites invisíveis, imperceptíveis neste espaço tecido pelo corpo do dançarino que duplica o espaço visível. Existe ar, corrente de ar, luz e sombra, a respiração e o olhar, as densidades, as torsões, as distâncias e as profundezas, e as sensações, e as memórias, e as trocas, e as circulações entre tudo isso. O dançarino escava, sonda o espaço e aí encontra os limites entre os elementos do espaço. Ele também traça limites desconhecidos e não cessa de transpô-los. Os limites se encontram tanto entre o corpo e o espaço como no interior do espaço e no interior do corpo. Não há dança sem transposição destes limites, sem deslocamento de todos esses limites, atravessando todos os elementos heterogêneos. E essa dança, às vezes, inaugura limites ou demarcações de uma maneira quase imperceptível, mas, pouco a pouco, singularmente sensível. Nós vemos aí limites múltiplos entre o perceptível e o imperceptível. Nós descobrimos, no interior de nosso corpo, o dançarino que trabalha nosso corpo. (KUNIICHI, Uno, p.69, São Paulo: 2012).


Há algum tempo me deparei com este fragmento do livro “A Gênese do Corpo Desconhecido”, escrito pelo pensador Kuniichi Uno, gentilmente traduzido pela pesquisadora Christine Greiner e publicado em 2012 pela editora N-1. A escolha de trazê-lo de maneira inaugural para este campo de escrita vem no intuito de apontar para um pensamento de corpo sobre o qual tenho me interessado, e que desejo compartilhar. Vem, também, para que mais pessoas possam ter contato com as imagens que o referido texto traz sobre a dança, abrindo espaço para que estejamos disponíveis de modo que ela possa acionar nossos sentidos, produzir memórias e reflexões, quando entramos em contato com ela.

A ideia é que, dentro do Portal MUD, este possa ser um canal de partilha e reflexão poética. Que seja um lugar de construção constante sobre uma maneira de escrever a dança – uma de tantas outras que possam existir –, aberto para visitar obras, acontecimentos, estudos, inquietações. O acontecimento da dança é o disparador.

Existe algo na arte que tem a ver com encontro, imagino. Talvez pudéssemos falar em empatia. Talvez venha do momento em que um imaginário toca outro; do momento em que o universo particular de informações entra em diálogo com aquilo que a obra artística produz, dentro do espaço e contexto em que ela se insere; que nos atinge de maneira física, de modo que o que vemos possa oscilar entre o concreto estado presente e o mergulho que vai aos poucos sendo inventado pelo nosso pensamento. E isso parece ressoar, permanecer, perdurar. Tal como com os escritos de Kuniichi Uno, muitos trabalhos em dança são capazes de incitar tal tipo de presença. Um deles, particularmente, sempre retorna à minha percepção e, numa propulsão, me move a viver-dançar.

Num espaço sutil, claro e cuidadosamente iluminado, as sensações parecem ser colocadas à disposição, como se fosse possível permanecer num estado de suspensão que vai sendo desfeito e refeito pelo movimento de cada instante. “Primeiro dançar, depois pensar”, diz Samuel Beckett sobre a ordem das coisas. Dançar que se faz presente no corpo do artista, mas também no corpo de quem o vê. Dançar de pensamentos, do que move as pessoas na vida diária, das relações que as modificam.

“Linguagem que impulsiona e é impulsionada pelo movimento se preferir um pátio aonde cinco pessoas transitam vão e voltam se ouvem topografia dança de ajuste ao movimento da vida caminha em direção a si mesmo carrossel todos ouvem distendidos todos habitam o pátio todos habitam tudo é esboço contornado de vento presente ao redor”, diz um release de “Projeto propulsão/ o que faz viver – sem título”, criação da Key Zetta & Cia de 2012, que nos permite pensar sobre a dança. Antes disso, nos permite dançar. A começar do próprio nome, que omite o título, ao mesmo tempo em que revela a consistência do que será assistido. Nesse fluxo, quase vertiginoso, as palavras lidas juntas, ou em separado, salteadas ou recombinadas promovem diferentes sentidos.

O movimento não determina um início de algo, mas continua, impulsionado pelos corpos na cena. Os corpos compõem uma única paisagem e a dança vai então sendo construída na particularidade do gesto, numa busca individual, por meio da qual cada intérprete traz em si um tipo de relato, um depoimento, mesmo quando a ação é coletiva. Vontades, afetos, lembranças são apresentados, sendo permeados pela sonoridade do violino de Paula Pi, instrumento que há muitos anos acompanha a artista, convidada para esta criação. É esta uma peça que fala do existir, daquilo que se presentifica, do que move cada pessoa, do particular, da sutileza de cada acontecimento. Fala da vida. Nisso tudo está a dança, que permite àquele que assiste deparar-se com o que há de mais íntimo em si próprio, mesmo que seja apenas por uma primeira impressão ou por pequenas qualidades de sensação.

Quem já teve a oportunidade de ver o trabalho da Key Zetta & Cia em cena, ou mesmo de vivenciar corporalmente uma aula de dança conduzida por Key Sawao e/ou Ricardo Iazetta, sabe da continuidade de pesquisa que a dupla, juntamente com seu atual elenco que agrega os artistas Beatriz Sano, Carolina Minozzi e Maurício Florez, vem desenvolvendo. Este percurso, que envolve inúmeras parcerias e colaboradores, reflete a extensão de uma noção de corpo que transpõe os limites imperceptíveis”, que “duplica o espaço visível”, modo pelo qual a dramaturgia vai se constituindo em cada nova obra. Falo aqui de “Projeto propulsão/ o que faz viver – sem título”, mas poderia falar de peças mais antigas como “A Pé – walkingtheline”, “Permitido sair e entrar”, “Obrigado por vir” (criada, revisitada e, posteriormente recriada com 14 dançarinos que participaram de trabalhos do grupo durante seu percurso); ou das mais recentes, “Para todos os seguintes” (trabalho voltado ao público infantil que surgiu como desdobramento de “Projeto propulsão/ o que faz viver – parte 2 seguinte”), “SIM” e “Riso”. Nos últimos anos tenho acompanhado o repertório da Cia que envolve mais de 10 criações – para além dos trabalhos solo – que traduzem a consistência de um estudo de movimento estruturado a partir do desejo de viver a dança. Este desejo eu chamaria de propulsão, respiração para seguir adiante.

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Marcus Moreno

Marcus Moreno

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Formado em Comunicação das Artes do Corpo, tem especialização em Técnica Klauss Vianna pela (PUC-SP), e licenciatura pela Universidade Anhembi Morumbi. Em 2013 criou o solo A Imagem como Ausência (Proac), orientado por Key Sawao, que também colaborou nos trabalhos seguintes, A Flor da Lua (2016), e Estudo para o Encontro (Proac/2017), concebidos em Residência Artística na Casa das Caldeiras (SP). No campo da gestão cultural, coordenou o Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo (2013-2016), fez parte da implantação do projeto do Centro de Referência da Dança (CRDSP), integrou a equipe de curadoria do Circuito Municipal de Cultura e participou da Comissão de seleção do Programa VAI. Representou a Secretaria Municipal de Cultura em eventos internacionais e foi um dos responsáveis pela coordenação do Encontro Latinoamericano de Gestores de Dança: Mobilidade, Identidades e Estratégias de Cooperação (2016).  Atualmente integra a equipe de programação das Oficinas Culturais do Estado, programa gerido pela Poiesis – Organização Social de Cultura. Tem interesse em práticas orientais, improvisação cênica e estudos somáticos.