Crédito das Fotos: Catarina Assef
Uma das características mais fascinantes de um palco é o seu poder de estimular a imaginação da plateia. A Cia Nova Dança 4 explora com maestria esta ferramenta em seu repertório. Como diz a criadora e diretora da companhia Cristiane Paoli Quito, suas criações caminham na direção da poética do movimento. Assim acontece o espetáculo “O Beijo”, criado em 2009: uma fusão da dramaturgia de Nelson Rodrigues, a partir da obra “O Beijo no Asfalto” (1961), com a encenação dinâmica e o olhar criativo de Quito.
A base de sustentação deste espetáculo é justamente atores bailarinos com movimentos vigorosos que ecoam a trama de Nelson Rodrigues através de seus corpos tonificados.
Para instigar a imaginação da plateia são explorados, através de movimentos orquestrados, elementos como a ginga e a malandragem carioca, claramente desenhados no texto rodriguiano, incrementados pela trilha inspirada na bossa nova, no samba, no tango moderno de Astor Piazzolla e até mesmo no jazz americano da versão do clássico “Cry Me a River” cantada ao vivo.
O texto de Nelson traz a tona questões, tristemente, ainda bastante contemporâneas como a “fake news”, o sensacionalismo do fotojornalismo fabricando escândalos em cima de fatos superficiais criados para chocar e vender notícias, além da marginalização da homoafetividade.
“Selminha – Papai, eu amo Arandir.
Aprigio (incerto) – Sei, acredito. Mas digamos que seu marido. Uma hipótese. Que seu marido não fosse, sim, exatamente, como você pensa. Você gosta de seu marido a ponto de aceitá-lo mesmo que. (Mais incisivo) Numa palavra: – você é feliz ?”*
Nelson Rodrigues tem a indústria de notícias muito presente em suas obras, pois desde os quatorzes anos era íntimo das oficinas de jornais e já tinha criado seu próprio jornalzinho, inspirado pelo convívio com seu pai e seus irmãos que traziam na rotina o trabalho editorial do jornal “A Manhã”, onde aos dezesseis anos se tornou colunista e transitava por autorias de artigos nas páginas policias até a “página três” onde estavam autores consagrados como Monteiro Lobato e Agripino Grieco, conforme nos conta Ruy Castro em seu livro biográfico “O Anjo Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues” (1992). Em “O Beijo” Quito leva o próprio papel de jornal, em seu estado físico e simbólico, para contracenar com os artistas, estimulando mais uma vez a imaginação da plateia com esta coreografia planejada, repleta de dramaticidade que é constantemente entregue ao espectador pelos elementos cênicos contidos no texto como a personificação do jornal, o tac tac da maquina de escrever, os flashes das fotos e até mesmo com a luz que risca avenidas no palco e cria o local do “crime perfeito” para o personagem principal Arandir: beijar um desconhecido atropelado, no meio fio, para atender ao seu pedido antes da morte. Uma criação cênica apoiada em recursos simples desenha a moldura ideal para o quadro da cena chave que conduz a trama.
“Amado (valorizando o efeito culminante) – De repente, um outro cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajoelha-se. Apanha a cabeça do atropelado e da-lhe um beijo na boca.
Cunha (confuso e insatisfeito) – Que mais?
…
Amado – Não interrompe! Ou você não percebe? Escuta, rapaz! Esse caso pode ser a sua reabilitação e olha: – eu vou vender jornal pra burro!”*
Teatro e dança convivem no palco com olhar que garimpa o ritmo e o reflexo do corpo, os transpondo para as tensões e encantos contidos na dramaturgia consagrada de Nelson Rodrigues.
O figurino, com chapéus, vestidos rodados, gravatas, ternos e suspensórios, seus vermelhos, cinzas, pretos e brancos, entregam a personalidade dos personagens da Tragédia Carioca pintada por Nelson e a cenografia com mesas e cadeiras de escritórios com rodinhas, ambientalizam as redações de jornais e sala de delegacia e contribuem para a dinâmica dos movimentos de palco, além de descrever o universo rodriguiano. É bonito de ver os bailarinos, além de dançar entre eles, explorarem os objetos de cena para ilustrar suas ações no palco e assim contribuir para contar a história, recurso que Quito explora tão bem.
O movimento sobrepõem as palavras pra dizer o que precisa ser dito: “Queríamos contar histórias sem dizer palavras, construir nossa corporeidade por meio de diálogos, situações e rubricas contidas na Tragédia Carioca, contada por Nelson Rodrigues. A dança seria nossa linguagem guia e a ela se comporiam outras linguagens. Aliás a questão era exatamente essa: articular a dramaturgia do corpo com a dramaturgia teatral.”, nos conta Quito no texto de apresentação do espetáculo publicado no programa da peça apresentada no Sesc Pinheiros (SP) em abril de 2018. E assim a dança de Quito dialoga com o texto de Nelson, e encantam a plateia como num beijo apaixonante.
“Arandir (na sua cólera, apontando para a cunhada) – Era assim que a polícia perguntava. Nem de vista, nem de nome? Martelavam. Mas olha! O que foi. O rapaz estava morrendo. Morrendo junto ao meio-fio. Mas ainda teve voz para pedir um beijo. Agonizava pedindo um beijo. Na polícia, o repórter disse que era hora de muito movimento. Toda a cidade estava ali, espiando. E viu quando eu… “*
*trechos de “O Beijo no Asfalto” Tragédias Cariocas II, de Nelson Rodrigues
Referências bibliográficas:
Castro, Ruy. (1948). O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues/ Ruy Castro – São Paulo: Companhia das Letras, 1992
Rodrigues, Nelson (1912 – 1980). Teatro completo de Nelson Rodrigues, 4: tragédias cariocas II/organização de Sábato Magaldi – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990
Programa do espetáculo “O Beijo”, abril de 2018, Sesc Pinheiros, São Paulo.