Colibri, novo solo de Maria Emília Gomes, dança a existência e a inventividade
“O olhar da intérprete não se curva à súplica, mas se ergue como convocação. O corpo, ao dançar, não se oferece à exotização; abre caminho para outra visibilidade — não a do consumo, mas a da ancestralidade que vigia, sustenta e liberta” (texto da dramaturgia de Luiz Anastácio)
Colibri, novo solo da artista Maria Emilia Gomes, inspirado no pássaro que dá título à obra, símbolo de resistência e ousadia, atravessa memórias e invoca outras narrativas de seu território de infância, marcado por apagamentos históricos e contextos de exploração. A coreografia traz para a cena como primeiro fundamento suas raízes negras, de origem mineira, com suas dimensões artísticas e políticas.
Projeto contemplado pela 37ª Edição do Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, Colibri se manifesta como movimento que confronta o esquecimento, mas também lança uma postura de desobediência ao apontar uma nova possibilidade de história, de fabulação para o presente e futuro. “O trabalho dá uma perspectiva de possibilidade de narrarmos nós mesmos a nossa dança”, diz Maria Emília.
Luiz Anastácio, dramaturgista da coreografia, lembra que a escritora, teórica feminista, artista e ativista antirracista americana bell hooks (1952-2021), dizia que, “para mulheres negras, o ato de olhar foi por séculos negado e punido. O direito de ver e de ser vista sempre esteve cercado por proibições e violências, mas também gerou a invenção de um olhar opositor, capaz de resistir, interrogar e criar novas imagens.”
O solo de Maria Emília parte desse olhar para a história encarnada na cor da pele e reivindica um novo espaço: sua dança não pede licença, trata do passado sem exotização e apresenta uma nova visibilidade carregada de ancestralidade, que sustenta e liberta. “Eu dancei balé, fiz conservatório na Europa. Não nego nada disso. Mas, ao mesmo tempo, a partir do momento que entendi que era estereotipada, invisibilizada, que não ocupava os lugares meramente por meu talento ou mérito, na verdade, estava ali cumprindo uma série de outras coisas, entendi que aquele espaço, de certa forma, me matava. Nesse momento, precisei voltar para a base, escutar um pouco mais, aprender um pouco mais com os meus, e entender que precisava existir e não só resistir, porque até então eu dançava, eu ocupava, eu acontecia na cena, mas eu resistia”, coloca a artista.
Colibri busca nesses saberes ancestrais uma âncora em tecnologias corporais e propõe uma dança que mergulha na história pessoal da intérprete, sem uma linearidade biográfica, com uma escuta ampliada da memória, da terra e dos corpos em travessia.
Na coreografia, o colibri é evocado como pássaro que desafia o tempo ao bater asas velozes e sustentar-se no ar, “metáfora do corpo que escapa às normas”, afirma o dramaturgista. Em cena, Maria Emilia propõe seu voo: pairar, recuar, avançar, inventando estratégias de permanência, como fazem os corpos negros em sociedades que os tentam silenciar.
Há também o diálogo e referência à terra, em particular Minas Gerais, espaço da infância de Maria Emília. “A lama que tentou soterrar corpos e memórias em Mariana retorna como lembrança e como denúncia. Ainda assim, como a fumaça do cachimbo da mais velha, o colibri sobrevoa, desenhando no ar a certeza de que nada apaga a vitalidade negra”, coloca Anastácio. Elementos cênicos são usados como metáforas e aparecem na cena carregados de simbologias que conectam a intérprete ao Congado mineiro, as guardas de Moçambique, ao rio Gualaxo do Norte, ao rompimento da Barragem de Fundão e as fabulações de crianças e adolescentes de comunidades de São Paulo. Entre céus e serras, a coreografia acontece invocando estados corporais, transformando o corpo da “menina que dança” em bicho que voa, em preta velha que ensina e na criança que sonha.
Para Maria Emília, apesar de ser um solo, Colibri é multidão. O processo foi construído de forma coletiva e multidisciplinar, ao lado de artistas, mestres e colaboradores de diferentes linguagens e trajetórias. “A obra diz sobre inventividade e desejos de voar: a pergunta que fazia para as crianças nas movências era: Como é que eu faço pra voar?”, finaliza.
O espetáculo, criado a partir dos desejos da intérprete de voar, invoca também o Neter, princípio kemético que remete aos deuses da natureza. O corpo, extensão dessa potência divina, cria, transforma e vigia. A dramaturgia compreende a dança como tecnologia ancestral de sobrevivência, como o bater de asas que se acelera, se suspende e se converte em vulto, traçando no espaço a certeza da permanência. É nesse ponto que a dança se torna filosofia encarnada: gesto que se reconhece como natureza e como divindade. (texto construído com base na dramaturgia de Luiz Anastácio)
Sobre o Projeto Colibri
O Projeto Colibri se desenvolveu em um ciclo de três etapas nomeadas de Ginga, Mandinga e Esquiva: a primeira parte contou com ações artísticas e pedagógicas voltadas às infâncias em comunidades; em seguida, realizou uma residência com artistas da cidade em coprodução com um teatro distrital, o Teatro Flávio Império, que resultou na obra A[MAR]KALUNGA, apresentada no fim de junho; e agora se encerra com o solo Colibri. Em dezembro, também será lançado um livro-objeto, publicação de registros da trajetória e das ações realizadas pelo projeto Colibri.
Em todas as ações, a realização do projeto se propôs a habitar lugares descentralizados, vivenciar espaços de aquilombamento e estar na comunidade, e a encontrar com grupos, artistas, mestres de saberes na cidade de São Paulo. “O desejo do projeto era fazer o encontro com as infâncias, com as dissidências e propor espaço de aquilombamento enquanto espaço de pertencimento”, relata Maria Emília.
O Projeto Colibri foi ninho de fabulações individuais e coletivas: Maria Emília Gomes, Douglas Iesus, Maicou Yuri , Dida Genofre, Mar Selva, Lemuris, Daniela dos Santos e Rafael de Souza constituíram o núcleo artístico de Colibri, produzido por Iolanda Costa. Para além do núcleo, somaram-se artistas, profissionais da cultura, técnicos e artesãos que passaram a compor a ficha técnica do projeto. Neste sentido, o projeto é vivenciado coletivamente desde janeiro de 2025, e possibilitou que pessoas, em sua maioria dissidentes e periféricos, também criem dança.
Sobre Maria Emília Gomes
Maria Emília Gomes é artista da dança. Profissionalizou-se como bailarina intérprete pelo Balé Jovem do Palácio das Artes (MG) e como intérprete-criadora pela Escola Superior de Dança do Instituto Politécnico de Lisboa/PT. É Licenciada em Dança pela UFMG e em Estudos Gerais: Artes e Culturas Comparadas pela Universidade de Lisboa. Em 2024, foi coreógrafa residente no Programa Feminino Plural realizado pelo programa IBEROCENA, em Santa Eulalia de Gállego/Espanha; e artista residente no programa “Artes do Amanhã: Tecnologias afetivas”, realizada no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro/RJ (2024). Em 2023, foi artista residente na École des Sables/Senegal, no Programa de Formação África-Diaspórica 2023. A artista, premiada pela Cooperativa Paulista de Dança no XII Prêmio Denilto Gomes como destaque em Dança em 2024, já atuou como bailarina em diferentes companhias públicas (BJMG e Cia Municipal de Dança de Porto Alegre/RS) e em coletivos independentes em Minas, Rio Grande do Sul e São Paulo. Também foi artista-docente do curso de Coreografia (Dramaturgia e Direção) na SPED – São Paulo Escola de Dança (2024); artista orientadora no Programa Qualificação em Dança do Governo do Estado de São Paulo em 2022, e coordenadora artística do Ayodele Balé entre 2019-2023, projeto idealizado e dirigido por Milton Kennedy. É mestranda em Ensino-Aprendizagem em Artes na UFMG e pesquisa danças afro-diaspóricas desde 2018.
Sinopse:
Colibri, da artista Maria Emilia Gomes, é um solo de dança contemporânea criado a partir dos desejos da intérprete de voar. Inspirada no pássaro que dá nome à obra, a coreografia atravessa memórias e invoca outras narrativas de seu território de infância, marcado por apagamentos históricos e contextos de exploração. Em cena, elementos cênicos surgem como metáforas e simbologias que conectam a intérprete ao Congado Mineiro, ao rio Gualaxo do Norte, ao rompimento da Barragem de Fundão e a fabulações de crianças de comunidades periféricas de São Paulo e sul da Bahia. Entre céus e serras, “Colibri” sankofa, reivindica dança como tecnologia e amor como possibilidade de existir. A obra é marcada, também, pelo olhar da intérprete e seu corpo preto abre caminho para a inventividade na qual “uma é multidão”.
Ficha artística
Concepção, criação e interpretação: Maria Emília Gomes
Direção: Douglas Iesus
Dramaturgista e Direção Artística: Luiz Anastácio
Criação musical e intérprete sonoro: Maicou Yuri
Desenho de Som: André Teles
Operação de Som: André Teles e Júlia Lima
Concepção de luz: Dida Genofre
Cenário: Dida Genofre e Maria Emília Gomes
Preparação Vocal: Pâmella Carmo
Figurino e Maquiagem:
Elementos cênicos: André Pastore
Provocações e preparação corporal: Mestre Pedro Peu, Claudia Nwabasili, Roges Doglas e Igor Gasparini
Documentação e registro: Mars Selva
Designer gráfico: Ian Fraga Muntoreanu
Terapeutas: Ma Devi Murti e Silvia Oliveira
Intérpretes de libras: Thuany Alves e Mile Silva
Assessoria de imprensa: Flávia Fontes
Produção: Iolanda Costa
Inspirações literárias e fonte de pesquisa: Conceição Evaristo, Leda Maria Martins, Cidinha da Silva e Ana Maria Gonçalves.
Em memória das que vieram antes: Carmem Leão da Cruz, Marieta de Oliveira Gomes, Lazina Gomes de Brito e Almenda Ferreira de Lima.
Serviço
Colibri – solo de Maria Emília Emília Gomes
Duração: 40 minutos | Classificação: livre
Teatro Flávio Império
R. Prof. Alves Pedroso, 600 – Cangaiba, São Paulo
Dias 22 e 23 de novembro, sábado, 20h, e domingo, 18 | Ingressos: gratuitos, distribuídos uma hora antes na bilheteria
Informações do evento
Datas e Horários:
22 de novembro de 2025
até 23 de novembro de 2025
20:00 às 21:00 -
Sábado
18:00 às 19:00 -
Domingo
Entrada Gratuita
Classificações: livre
Acessibilidade: Sem Acessibilidade
Telefone para contato: (11) 98187-8462
Site: https://www.instagram.com/reel/DQcve6QkkjH/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==
E-mail: [email protected]
Formato do Evento: Presencial
Local: Teatro Flávio Império
Endereço: Rua Professor Alves Pedroso, 600 - São Paulo / SP - 03721-010
Localização: